Ocupação no IFRN marcou vida de liderança estudantil

Na semana passada, a Agência Saiba Mais deu início à série de reportagens intitulada “Primavera Secundarista: nossos sonhos são pra valer”, com histórias de cinco lideranças secundaristas que ocuparam os campi do IFRN em 2016 contra a PEC do Teto de Gastos, a Reforma do Ensino Médio e o projeto Escola sem Partido. Agora, damos continuidade com o perfil de Lany Soares, de 27 anos, que à época estudava Controle Ambiental no IFRN Natal-Central. Nas semanas seguintes, serão publicados os perfis de Miranda Júnior (IFRN Zona Norte), Mikael Lucas (IFRN São Gonçalo do Amarante), Marília Gabriela (IFRN Currais Novos) e Viviane Forte (IFRN Natal-Central).

Lany Soares: “Marcou a minha vida para sempre”

Lany Soares viu que precisava estar no movimento estudantil para se sentir acolhida e acolher outras mulheres. Em casa, a adolescente enfrentava situações duras. Foi vítima, no próprio lar, de assédio e estupro. Participar de algo coletivo era sua chance de contar sua história e, quem sabe, ajudar a tirar outras pessoas desse tipo de situação.

A estudante entrou no IFRN Natal-Central em 2013, aos 16 anos, para cursar Controle Ambiental. Aos poucos, foi se envolvendo com o Grêmio Estudantil Djalma Maranhão (GEDM), sem fazer parte oficialmente das gestões. Com o tempo, percebia que se libertava aos pouquinhos da opressão que sofria em casa. Constatou que o IF poderia ser mais do que um local de estudos. Estudante negra, havia entrado na instituição por cotas. Foi tendo novos acessos a conhecimentos, pessoas, oportunidades, enquanto via, ao mesmo tempo, outros estudantes em vulnerabilidade socioeconômica com dificuldades de conseguir se manter sem bolsas de apoio. Precisava fazer algo.

“Eu demorei muito para conseguir uma bolsa aqui e eu precisava muito. Esse foi um dos motivos também porque eu quis entrar no movimento estudantil”, conta Lany.

Para ela, os processos internos precisavam ser mais transparentes. Inquieta, queria saber quantas bolsas eram disponibilizadas, por que uns ganhavam, mesmo não precisando, e outros que precisavam não ganhavam.

“Tudo isso me chamou muita atenção, fez com que eu mergulhasse de cabeça até o final do curso.”

Entrevista com Lany foi realizada em abril, época em que IFRN enfrentava outra greve | Foto: Valcidney Soares

Antes de Michel Temer, outros cortes orçamentários já ameaçavam as instituições federais de ensino. Ela se lembra de um no começo de 2015, ainda na gestão Dilma Rousseff, situação que foi virando “uma bola de neve”.

“Nem se parasse para contar a gente conseguiria numerar o tanto de protestos que fizemos na rua, e, a partir disso, as coisas foram piorando”, explica. Em 2016, com Temer, os cortes foram aprofundados. Já dentro do GEDM, sua gestão buscava equilibrar as demandas internas com as pautas nacionais da educação. Em um momento, contudo, Lany percebeu que as prioridades tinham que se voltar para o que acontecia em Brasília.

“Porque eu entrei em 2013, tive acesso a muita coisa em 2013 e 2014. Mas, quando chegou em 2015, a partir dessa bomba do corte, a gente já viu mudança aqui dentro no refeitório, na assistência estudantil, então não tinha como a gente não dar uma atenção para isso”, explica.

Não era fácil. De alguns via o desdém, a percepção de que todos do grêmio eram “vagabundos”, críticas e mais críticas. 

“Eu não vou mentir. Às vezes, eu faltava à aula mesmo para poder estar na rua, mas é porque era um sensor de desespero na minha cabeça”, diz. 

Pensava que as manifestações precisavam ser vistas e os estudantes, ouvidos, para que no futuro pudesse continuar tendo acesso às suas aulas, e outros jovens tivessem a mesma oportunidade que ela teve.

“Eu tinha que lidar com desde os alunos que não acreditavam em mim, como eu tinha que estar, às vezes, lá na Reitoria, botando o dedo na cara do reitor. Então, aprendi a ter postura, a ser quem eu sou hoje, a educação que eu tenho — também a forma de me comportar em certos lugares —, por causa de coisas que eu passei aqui, por ter escolhido militar durante o meu ensino médio”, reflete Lany Soares.

Movimento foi chamado de “Ocupa IF” | Foto: Foto: Facebook REGIF (autoria não identificada)
Manifestantes se concentraram no pátio do IFRN Natal-Central | Foto: Facebook REGIF (autoria não identificada)

Lany conversou com o repórter na tarde de 24 de abril de 2024, nas rosquinhas do mesmo pátio do IFRN Natal-Central onde, quase oito anos atrás, ajudou a encher com aproximadamente 70 estudantes ocupados em barracas contra a PEC do Teto de Gastos e a MP do Ensino Médio. Em faixas instaladas pelo Sinasefe (Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica) na fachada e na entrada do campus, a mensagem era clara: “IFRN em greve. Recomposição, reestruturação e revogação: nossa luta é pela educação”.

O recado fazia referência à greve dos servidores iniciada em 3 de abril de 2024, exigindo do governo Lula valorização para as categorias. Não era uma novidade para ela: quando entrou no IFRN, em 2013, o Instituto ainda se recuperava de uma greve terminada no ano anterior, com duração de quase três meses, em que docentes e técnico-administrativos reivindicavam reajuste salarial, reestruturação das carreiras e outros pontos.

Em 2016, a ocupação dos alunos começou na noite de 28 de setembro, uma quarta-feira. Foram três dias de programação, que envolvia plenárias, rodas de conversa sobre a conjuntura, Lei da Mordaça, reformulação do ensino médio e discussões sobre mulheres, negros e LGBTs. 

“[A ocupação] quase que não saía, mas foi uma coisa de terminar de conversar numa tarde e, nessa mesma noite, já estava todo mundo acampado aqui onde a gente está, nas rosquinhas”, lembra Lany.

“Em todo canto tinha barraca, a gente montou um palcozinho aqui na frente do ginásio para poder conversar, fazer as rodas de conversa. A gente trancou o IF no outro dia de manhã, cadeado, corrente. Não queria deixar ninguém entrar. A gente sabia que não ia dar para fazer isso, mas era um ato de chamar atenção para aquilo que a gente fazia. Nesse mesmo dia, a gente de fato invadiu mesmo, porque estar dentro desse meio de militância não quer dizer que a gente vai fazer tudo na conversa. Era uma situação que já estava muito complicada por causa da reforma do ensino médio, por causa dos cortes, e a gente se viu desesperado, porque estava meio que gritando isso desde 2015, e ninguém dava atenção. Então, a gente entrou nos blocos de aula, invadiu mesmo as salas de aula e pediu um tempo para os estudantes só para escutar um pouco do que estava acontecendo”, conta.

Os alunos já sabiam que o movimento teria que pausar logo, até a sexta, 30 de setembro. Logo mais, no domingo (2 de outubro), a cidade teria eleições municipais e o IFRN Natal-Central era uma das seções eleitorais, ficando sob responsabilidade do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RN) a partir do sábado.

“Não é nosso objetivo gerar nenhum confronto com nenhum tipo de forças de coerção, assim como não há intenções de atrapalhar as eleições deste domingo, respeitando o espaço da zona eleitoral e considerando também os diversos estudantes de outros campi que participavam da ocupação e necessitavam voltar às suas cidades para exercer esse momento decisivo para os próximos períodos de suas regiões, tendo em vista a importância do exercício da democracia, já tão ferida e fragilizada pelo golpe de 2016”, dizia publicação da REGIF.

Mas o movimento, chamado “Ocupa IF”, não recuaria, prometendo voltar logo na primeira semana de outubro. A retomada foi concretizada no dia 6, uma quinta-feira. Enquanto isso, a situação nacional esquentava — literalmente. 

“Depois do golpe de Dilma, teve a pior fase que foi a do Temer. Em 2016, fora o movimento que eu ajudava aqui no estado, eu fui umas seis vezes para Brasília. Bala de borracha, cachorros, spray de pimenta, o que você pensar. Companheiras passando mal pela situação, mas a gente tentando chamar a atenção de algum jeito para algo que afetava todos os IFs nacionalmente”, diz Lany.

Num dos protestos mais marcantes da época, o Sinasefe do Rio Grande do Norte levou alguns ônibus com professores, técnico-administrativos e estudantes para um protesto em Brasília, convocado nacionalmente por outros sindicatos e organizações políticas. Em 29 de novembro de 2016, a “PEC da Morte” seria votada em primeiro turno no Senado, e era hora de pressionar. A movimentação violenta teve carros virados e vidros de ministérios quebrados. Lany estava presente, assim como este repórter — à época estudante de Informática no IFRN Mossoró —, que vivenciou helicópteros sobrevoando a uma baixa altura e uma forte repressão da Polícia Militar. 

Uma fotografia daquele dia, registrada pela jornalista Gisele Arthur, viralizou e gerou revolta. Ela mostrava homens e mulheres confraternizando em um coquetel numa área interna da Câmara dos Deputados. Do outro lado, sob a vista dos vidros da Casa, manifestantes sofriam com bombas de gás lacrimogêneo. A votação do primeiro turno da PEC do Teto só conseguiu ser concluída na madrugada da quarta, 30 de novembro.

Coquetel dentro do Congresso Nacional enquanto manifestantes enfrentavam polícia do lado de fora | Foto: Gisele Arthur

Para Lany, o fim de sua passagem pelo movimento estudantil trouxe tristezas. Ela achava que tudo o que havia sido feito tinha sido em vão. Depois, foi ressignificando as memórias: “Eu tentei me lembrar das pequenas coisas que eu e meus companheiros conseguimos”.

Lany conta que muita gente olhava para os gremistas e outros manifestantes com esperança. Ela diz que perdeu as contas de quantos estudantes a procuraram para dizer que não tinham fardamento ou mesmo comida em casa.

“Nossa, foram muitas pessoas que a gente — por baixo dos panos mesmo, porque não era para escutar e dizer para todo mundo — conseguiu cesta básica, conseguiu fardamento completo, que a gente ‘barulhou’ a Assistência Estudantil até eles entenderem que você não pode deixar essa aluna aqui sem bolsa na situação que ela está vivendo”, relembra. 

“E sem falar da formação do meu próprio caráter e dos meus amigos para enfrentar as coisas hoje em dia como adultos também, tudo isso teve um reflexo. Muitos amigos meus trabalham na política hoje em dia, fazem um ótimo trabalho de um jeito ou de outro, estão aí lutando, mas também somos pessoas que não estamos causando problema por aí. A gente tem uma consciência racial, a gente tem uma consciência dos papéis de gênero, então formou o cidadão completo para jogar no mundo e que, hoje em dia, vai fazer diferença, vai ser o pai, vai ser uma mãe melhor”, reflete.

“Também tive a oportunidade, esses dias, de ver uns dois ou três alunos para quem a gente conseguiu bolsa, alimentação, pessoas que os pais estavam quase sendo expulsos de casa porque não tinham aluguel, que agora estão na faculdade, está tudo bem, que agradecem quando veem a gente. Então, mesmo que a gente não tenha conseguido, por exemplo, derrubar o novo ensino médio, que está aí como uma bomba hoje em dia sendo pautado ainda oito anos depois, tem muitas pessoas que mudaram de vida por meio da gente, e nossa vida também foi transformada por causa disso tudo que a gente fez”, aponta.

Lany não chegou a concluir o ensino médio. Deveria ter terminado em 2017, mas passou no curso superior em Tecnologia em Gestão Pública no IF e não poderia ter duas matrículas diferentes na mesma instituição. Optou por voar e se formou em 2023, mas escolheu seguir outra área e, hoje, trabalha como social media.

Lany Soares trabalha atualmente como social media | Foto: Valcidney Soares

“Um dos meus maiores orgulhos foi ter participado do movimento estudantil, com certeza. Não tem mais nada, porque os benefícios para outras pessoas e para mim, como ser humano, foram muito grandes, é parte principal da minha vida e literalmente me salvou das situações que eu passava em casa”, fala. 

“Apesar de ter demorado, porque eu entrei aqui em 2013, em 2017 eu consegui bater o pé e sair das violências que eu passava em casa, então não tem como…”, Lany diz, e chora.

“Marcou a minha vida para sempre, mudou minha vida e me fez sair de uma situação que hoje em dia eu podia não estar viva. Eu tive até tentativa de suicídio por causa dessas coisas que eu passava em casa, mas eu estou aqui… Eu estou aqui tanto pelos funcionários desse Instituto que apoiavam muito o que a gente fazia, quanto pelos meus amigos que estavam nas trincheiras comigo também”, atesta.

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