Prefeito (a)s: mirem-se no exemplo

Em 2024 a Editora Record publicou um livro que deveria servir de leitura (e reflexão) de prefeitos (a)s e candidatos para a eleição de outubro. Trata-se do livro O prefeito escritor: dois retratos de uma administração- Graciliano Ramos. Com prefácio do presidente Lula, traz dois relatórios de Graciliano Ramos quando foi prefeito da cidade alagoana de Palmeira dos Índios. Eleito  pelo Partido Democrata em 1927 e assumiu por dois anos, 1928 e 1929. Os relatórios foram encaminhados ao Conselho Municipal (1928) e ao governador do Estado (1929-1930), além de dois breves Balanços (1928 e 1929). Embora para cumprir uma  mera exigência burocrática, foram divulgados na época em jornais de Maceió e até no Rio de Janeiro, e por sua qualidade literária foram importantes para torná-lo conhecido nacionalmente, revelando não apenas relatórios burocráticos, como o grande escritor que o escreveu.

A editora havia publicado em 1994 o livro Relatórios, organizado por Mário Hélio Gomes de Lima, com prefácios de José Paulo Cavalcanti Filho e Joel Silveira, além dos relatórios (três, ao Conselho Municipal e dois ao Governador do Estado), também outros documentos, como cartas ao presidente do Conselho Municipal de Palmeira dos Índios, comentários do governador de Alagoas sobre os relatórios, a repercussão dos relatórios em dois jornais de Maceió da época, comentários de contemporâneos aos relatórios como Manuel Diegues Junior e Marques Rebelo, além de comentários do sociólogo Roberto Martins, dos jornalistas Paulo Cunha e André Luis Resende e do ator Emmanoel Cavalcanti.

O que há de comum  nos comentários é o fato de que se trata não apenas de relatórios burocráticos de uma administração de um pequeno município no interior de Alagoas no final dos anos 1920, como revelador do talento de escritor do então prefeito, usando uma linguagem que não era habitual nesse tipo de documento.  Como afirma Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira (USP) no livro Para amar Graciliano (Faro Editorial, 2017) “Neste curto fragmento, a par do estilo seco e direto, notamos também (…) o  julgamento severo, feito sem concessões, a respeito da situação de atraso do Brasil rural nordestino”(p.25). Que em muitos aspectos, passados quase um século, ainda se mantém.

Seus relatórios descrevem, de forma concisa (e com doses de humor), como encontrou a cidade e a prefeitura, e o que conseguiu fazer, apesar de tudo. 

Denis de Moraes no livro O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (Editora Boitempo, 2012) diz que: “O relatório em nada reproduzia os sonolentos documentos oficiais do gênero. O estilo paraliterário apoiava-se em uma linguagem coloquial e envolvente, às vezes cáustica, na apreciação dos investimentos. Ao mesmo tempo, era conciso e absolutamente objetivo e preciso ao descrever ações empreendidas na Prefeitura” (p.66).

No prefácio da edição dos Relatórios de 2024, o presidente Lula disse: “A obra-prima do prefeito Graciliano Ramos foi colocar os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda” e sobre o humor “Mesmo indignado com a ineficiência da máquina pública, o calote dos mais ricos, o arrocho sobre os mais pobres, os contratos assinados às escuras, a má utilização de impostos pagos pelo contribuinte e o orçamento sempre apertado, ele não abria mão do bom humor”.

No relatório de 1928 encaminhado ao governador,  destaca o que considerou como algumas  anomalias que encontrou na prefeitura, entre elas os “inúmeros prefeitos” ( cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirão),   além de “empregados que não faziam  nada e outros que só faziam política” .

E para enfrentar esse conjunto de dificuldades para administrar (bem) a cidade diz ter lutado  com  tenacidade,  dentro da Prefeitura e fora dela . Dentro “uma resistência mole, suave, de algodão em rama e fora  “uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos do Nosso Senhor, que a administrava melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”. 

Ao se referir aos seus projetos de administração disse que tinha vários “de execução duvidosa” dizendo que ficaria satisfeito “de  levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável”. E se refere “a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro”. Para ele, naquele momento, Palmeira dos Índios era “um pasto de bois, cavalos, porcos e cabras, um sujeira grossa”, daí uma das primeiras decisões foi a proibição de animais soltos na cidade.

Em um dos relatórios ele disse ter suprimido despesas no qual descontentou “bons amigos e compadres que me fizeram pedidos” e que “aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem”. 

Quanto à limpeza das ruas e logradouros públicos “onde proliferavam animais vadios, lixo acumulado, lama e detritos” assim o fez, mesmo considerando as resistências, inclusive do pai. Ao saber que não acatou suas ordens, mandou um fiscal multá-lo, dizendo que prefeito não tem pai… como afirma Denis de Moraes “em uma cidade de hábitos arraigados, essas ações moralizadoras despertaram logo inimizades e incompreensões”.

Ao assumir a prefeitura tornou público o dinheiro que tinha em caixa (saldo), o que arrecadou (detalhadamente) e quanto gastou (idem), com total transparência que deveria servir sempre de exemplo no uso de recursos públicos. 

Ao se referir ao orçamento de 1928 disse que não tinha empregado “rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores”. 

 E em uma das poucas referências à administração anterior fez observações sobre o fornecimento de luz na cidade e negócios possivelmente escusos diz que “apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”.

No relatório de 1928 encaminhado ao governador se refere em sua conclusão à canalhice “preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal (…) não favoreci ninguém (…) perdi vários amigos, ou  indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta”.

No artigo Prefeitos, sigam o exemplo de Graciliano Ramos de Joaquim Ferreira dos Santos, publicado no jornal O Globo no dia 5/08/2024 – que inspirou este artigo, inclusive em relação ao título – inicia dizendo: “Agora que foi dada a partida para a grande olimpíada dos prefeitos, esses senhores que vão cuidar da trivialidade fundamental de como gastar nossos impostos no ordenamento de ruas e esgotos, quero anunciar solene: meu voto vai para aquele que no palanque se afirmar um seguidor fiel das posturas administrativas do coleguinha Graciliano Ramos”. 

E sobre os relatórios, transcritos no livro O prefeito e o escritor diz que “As contas públicas e o bom humor municipal nunca estiveram em tão boas mãos. Foi no tempo da delicadeza política, do decoro parlamentar. O fundo partidário e o orçamento secreto seriam pesadelos futuros”. 

E se refere aos que são ou pretendem ser prefeito (a)s que “pelo menos se aproxime dos princípios de honestidade, transparência de atos e zelo em investir nas coisas de interesse da população” destacando que ele” não fez alianças espúrias com os pastores, com a oligarquia dos coronéis, com os agiotas exploradores do ‘pobre povo sofredor’, e ainda deu um piparote nesses bacanas por acharem, como os ricos de hoje, que os impostos devem ser pagos pelos outros”. 

Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos Índios em 1928 e 1929,  apenas 27 meses (renunciou em abril de 1930. Aceitou o convite do governador para assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió, onde também  ficou  pouco tempo, se demitindo em dezembro de 1931) fez uma administração exemplar, acima de tudo, com  honestidade. Zelo em relação aos recursos, aplicação em obras necessárias à cidade, sem empregar parentes e amigos, e também sem aceitar bajuladores. E ao renunciar a prefeitura, se esta perdeu um excelente administrador, como disse Joaquim Ferreira dos Santos “a literatura ganhava um dos seus grandes, e a política alagoana se abria para o sertão de Collors, Liras e Renans”.  

Que o exemplo de Graciliano Ramos como prefeito  sirva como inspiração e exemplo na eleição municipal de outubro de 2024,  lembrando um levantamento do portal G1 publicado no dia 18 de julho de 2024, no qual constatou que – em três anos e meio de mandatos  – foram cumpridas apenas 37,6% das promessas dos prefeitos de 26 capitais na campanha eleitoral de 2020 para as áreas de educação, saúde e segurança. 

E segundo dados do TSE,  mesmo considerando a morosidade da justiça no julgamento desses caso (investigações, provas, recursos etc.) 96 prefeitos eleitos em 2020 foram cassados (a maioria de São Paulo, 21. No  Rio Grande do Norte foram 4). A maior parte em  municípios com até 50 mil habitantes (38). Muitos foram  presos (só em Santa Catarina, 27, de vários partidos) e entre os crimes, compra de votos e o abuso de poder econômico e político. Foram “condenações por improbidade administrativa, danos ao Erário e penas criminais, além do uso irregular dos meios de comunicação”.  No levantamento feito pelo Globo  MDB e PSDB foram os partidos com mais prefeitos que perderam  mandatos:14 cada, seguido pelo PL e PSD, com 11 (https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/03/04/justica-eleitoral-cassa-96-prefeitos-por-compra-de-voto-ficha-suja-e-abuso-de-poder-desde-2020.ghtml).

Para os eleitores e eleitoras cabe lembrar parte da letra de uma canção de Sergio Ricardo, Calabouço (1973): Olho aberto, ouvido atento e a cabeça no lugar.

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