No Brasil em que a democracia ainda disputa seu próprio sentido, a punição imposta ao procurador da República Emanuel Ferreira de Melo pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) acende um alerta. Com trajetória marcada por ações em defesa dos direitos fundamentais, Ferreira tornou-se alvo de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) sob a acusação de “viés ideológico”. A penalidade imposta pelo CNMP é hoje contestada por entidades jurídicas e de direitos humanos, que apontam graves violações ao devido processo legal, à ampla defesa e à própria independência funcional dos membros do Ministério Público.
A atuação de Ferreira ganhou visibilidade por enfrentar diretamente resquícios autoritários ainda presentes nas instituições. Foi dele a denúncia contra o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, por danos morais coletivos à comunidade acadêmica das universidades públicas. Também coube a ele questionar a homenagem ao general Costa e Silva promovida por ex-dirigente da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), em desacordo com as recomendações da Comissão Nacional da Verdade. E foi ele, ainda, quem alertou para possíveis irregularidades no uso da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), associando-as ao legado do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), símbolo da repressão na ditadura militar.
Todas essas ações, segundo juristas que acompanham o caso, estão respaldadas por precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No entanto, para a Corregedoria do CNMP, o procurador teria extrapolado os limites de sua função ao tornar públicas suas manifestações.
Em entrevista à Saiba Mais, Ferreira relata que recebeu a decisão “com tristeza e indignação”, classificando o PAD como um instrumento de intimidação. Ele afirma ter sido alvo de tratamento discriminatório.
“O conselheiro que divergiu do relator utilizou fatos prescritos, sequer constantes na portaria de instauração do procedimento, e chegou a classificar minha atuação como ‘ridícula’”.
Segundo Ferreira, há uma tentativa de confundir defesa da democracia com partidarismo político.
“Trata-se de uma estratégia que promove uma grave proteção deficiente ao regime democrático, sendo ainda mais grave quando levada a cabo por um órgão correicional”, pontua.
Para ele, a Constituição é clara ao atribuir ao Ministério Público a função de promover a defesa do regime democrático — e não apenas no campo eleitoral.
Inspirado pela teoria da democracia militante, Ferreira acredita que as instituições precisam desenvolver mecanismos para se proteger de dentro. Essa concepção, formulada por Karl Loewenstein no contexto da ascensão nazifascista, sustenta que a democracia não pode ser ingênua frente às ameaças autoritárias. E é nessa perspectiva que o procurador enxerga seu próprio papel.
“Minha atuação desenvolveu-se nos estritos limites constitucionais”, afirma.
A decisão do CNMP, no entanto, parece não ter silenciado a voz que pretendia calar. Desde que o caso veio à tona, uma série de manifestações públicas de apoio tomou forma. O Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Norte publicou nota em solidariedade ao procurador, classificando o processo como uma tentativa de cerceamento à atuação de um agente público comprometido com os princípios constitucionais. A manifestação soma-se à do Coletivo Transforma MP, do Conselho Estadual dos Direitos Humanos e Cidadania do Rio Grande do Norte (COEDHUCI-RN), da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e de nomes de peso como os juristas Lenio Streck e Pedro Serrano.
“Essa reação me honra profundamente”, diz Ferreira. “Ela somente tem ocorrido porque, racionalmente, essas pessoas estão convencidas dos abusos que foram praticados. É um movimento fundamental para que o STF reconheça a injustiça cometida”.
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A defesa do procurador busca, agora, anular a penalidade junto ao Supremo Tribunal Federal. Para além da reparação individual, Ferreira acredita que a decisão do STF poderá formar um precedente com impacto simbólico e institucional.
“Vou lutar para que esse precedente seja formado. Ele interessa a toda a sociedade brasileira, especialmente aos membros do Ministério Público que ainda levam a sério a Constituição de 1988.”
Ao ser questionado sobre o que está em jogo, ele é direto.
“A disputa pela democracia. Desde a Proclamação da República, o Brasil vive entre juristas democratas e reacionários. De um lado, nomes como Paulo Bonavides, meu principal referencial. De outro, Francisco Campos, autor do Ato Institucional nº 1”.
Confira a entrevista completa.
SAIBA MAIS: Como o senhor recebeu a decisão do CNMP e que leitura faz sobre os fundamentos utilizados para aplicar essa penalidade?
EMANUEL DE MELO: Recebi com tristeza e indignação, pois a acusação em torno de uma suposta “atuação ideológica” consiste, na verdade, em um instrumento de intimidação. Prova disso foi a forma como o julgamento se desenvolveu, tendo o conselheiro que abriu a divergência em face do voto do relator utilizado fatos prescritos e sequer presentes na portaria de instauração do procedimento para me condenar. Em outro momento, o mesmo conselheiro chegou a classificar minha atuação como “ridícula”. Para além da falta de urbanidade e respeito, trata-se de uma grave ofensa ao devido processo legal e ao direito de defesa.
SAIBA MAIS: A acusação de “viés ideológico” foi central no PAD. O que, na sua avaliação, esse termo revela sobre a atual disputa de sentidos dentro das instituições públicas?
EMANUEL DE MELO: Ainda sobre tal acusação, ela confunde a atuação em prol da democracia, contra o processo de erosão constitucional que levou à tentativa de golpe, com algo político-partidário. Trata-se de uma estratégia que promove uma grave proteção deficiente ao regime democrático, sendo ainda mais grave quando levada a cabo pela Corregedoria.
SAIBA MAIS: O senhor considera que está sendo punido por exercer a autonomia que a Constituição garante aos membros do Ministério Público?
EMANUEL DE MELO: Sim. Nos termos do artigo 127 da Constituição, é função do Ministério Público promover a defesa do regime democrático — e isso não se exaure no exercício da mera função eleitoral.
Atuação e Enfrentamento ao Autoritarismo
SAIBA MAIS: Entre as ações que motivaram o PAD, estão denúncias relacionadas à ABIN e à homenagem a Costa e Silva na UFERSA. Qual a importância de o Ministério Público se posicionar diante de retrocessos simbólicos e institucionais como esses?
EMANUEL DE MELO: O Ministério Público, especialmente o Ministério Público Federal, tem um papel central na concretização da Justiça de Transição. Essas atuações que efetivei vão ao encontro disso, buscando evitar a intimidação acadêmica a partir de uma inconstitucional homenagem a Costa e Silva e do risco em torno da utilização abusiva da ABIN.
SAIBA MAIS: Em sua atuação, o senhor faz referência à teoria da democracia militante. Poderia explicar como essa concepção orienta suas ações como procurador da República?
EMANUEL DE MELO: A teoria da democracia militante foi desenvolvida inicialmente em 1937 por um constitucionalista alemão chamado Karl Loewenstein, o qual sustentava que, no contexto do nazi-fascismo, a democracia liberal teria de se tornar militante, ou seja, criar mecanismos jurídicos para se defender. A concepção apresenta certos limites e, obviamente, precisa ser ressignificada diante das características atuais do extremismo e de cada contexto histórico, mas a ideia central em torno da importância da autodefesa é fundamental. É importante consignar que o próprio STF tem utilizado alguma versão dessa doutrina, devendo-se destacar que todo membro do Ministério Público tem o dever de observar os precedentes da Corte. Assim, novamente, minha atuação desenvolveu-se nos estritos limites constitucionais.
Processo disciplinar e repercussão
SAIBA MAIS: Durante o PAD, houve denúncias de violação ao devido processo legal e à impessoalidade. Que aspectos concretos indicam que sua atuação foi tratada de forma discriminatória pelo CNMP?
EMANUEL DE MELO: Diversos elementos apontam para ofensa à impessoalidade no PAD, pois a Corregedoria do CNMP adotou padrão discriminatório contra mim, eis que:
a) utilizou linguagem ríspida, como dito, tachando como “ridícula” a atuação desempenhada;
b) durante correição extraordinária efetivada em Mossoró, não investigou redes sociais de outros membros que faziam postagens comparando a atuação do ministro Alexandre de Moraes com práticas da ditadura militar, enquanto postagens de minha autoria críticas ao autoritarismo foram utilizadas para abertura do PAD;
c) tentou utilizar documento juntado aos autos do PAD de maneira informal e sem prévia manifestação da defesa para subsidiar a abertura do processo;
d) finalmente, chegou a determinar a abertura de outro PAD ante a suposta incompatibilidade de horários com a função de professor que exerço na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Ocorre que professores em situação idêntica, na própria instituição, não foram alvo de fiscalização disciplinar semelhante, tendo a Corregedoria ignorado deliberadamente a existência de sentença judicial transitada em julgado reconhecendo o direito à acumulação dos cargos.
SAIBA MAIS: O senhor esperava o nível de apoio que tem recebido de entidades, juristas e movimentos da sociedade civil? Como interpreta essa reação coletiva?
EMANUEL DE MELO: Sinceramente, eu imaginava que, com a divulgação do caso, algum tipo de apoio eu teria, já que diversos juristas brasileiros são verdadeiros democratas. Não imaginava que seria nesse nível, congregando entidades como o Transforma MP, ANPR, Comissão da Verdade do RN, UFERSA, além de tantos professores importantes, como Lenio Streck e Pedro Serrano. Toda essa reação muito me honra — e ela somente tem ocorrido porque, racionalmente, todas essas pessoas estão convencidas dos abusos que foram praticados, compondo um movimento fundamental para que o STF reconheça a injustiça cometida pelo CNMP contra mim.
Perspectivas e caminhos
SAIBA MAIS: A sua defesa busca a anulação da punição no STF. Qual a expectativa com relação ao julgamento e qual o peso simbólico que essa decisão pode ter para a atuação do Ministério Público?
EMANUEL DE MELO: Tenho esperança de que o STF, oportunamente, anule o PAD, mas, seja qual for o resultado, já me considero um vencedor, diante de tanto apoio recebido. Agora, vou lutar muito para que esse precedente seja formado, pois ele interessa a toda a sociedade brasileira e, especialmente, a todos os membros do Ministério Público que ainda levam a sério a Constituição de 1988.
SAIBA MAIS: Considerando o atual cenário político-institucional, o que está em jogo quando se tenta silenciar uma atuação comprometida com os princípios constitucionais?
EMANUEL DE MELO: Está em jogo a disputa pela democracia, no contexto do constante enfrentamento entre os juristas brasileiros desde, pelo menos, a Proclamação da República e o início da tutela militar sobre o poder civil de modo mais frequente e sistemático. De um lado, os juristas democratas, como Paulo Bonavides — meu principal referencial —, e, de outro, juristas reacionários como Francisco Campos, autor intelectual do primeiro Ato Institucional da ditadura militar.
SAIBA MAIS: Que mensagem o senhor deixa para os novos membros do MP e para a sociedade que ainda acredita na força das instituições democráticas?
EMANUEL DE MELO: A mensagem é de coragem, com a certeza de que vale a pena lutar pela Constituição de 1988 e contra os legados da ditadura militar. Tenho apenas 40 anos, ou seja, vivi praticamente toda a minha vida no âmbito da nossa imperfeita democracia — e não vamos aceitar jamais qualquer tipo de retorno autoritário.
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