Das águas do Potengi emergem as mais belas e ixtranhas criaturas. É com essa convocatória que a Casixtranha Capítulo RN convida o público para a “Bailixtranha: Águas Turvas”, baile que será realizado no Complexo Cultural da Rampa, em Natal, no próximo dia 18. Mais do que um evento, trata-se de um ponto de ebulição de um movimento maior: o fomento e a efervecência da cena Ballroom no Rio Grande do Norte, que nos últimos anos ganhou força graças à iniciativa de artistas locais comprometidos com a resistência e a celebração dos corpos dissidentes.
Mas antes de debruçar sobre o que a cena potiguar tem erguido, é preciso compreender de onde vem esse movimento que, embora só recentemente nomeado no Brasil, é centenário em sua essência e essencial em sua proposta de afirmação para pessoas negras e LGBTQIAPN+.
A cultura Ballroom, como a conhecemos hoje, tem raízes profundas em contextos de opressão e resistência. Seu primeiro registro remonta a 1849, com um baile no Harlem, em Nova Iorque, que já servia como ato político de afirmação identitária de corpos dissidentes. Nas décadas de 1920 e 1930, durante o Harlem Renaissance, esse movimento ganhou força ao se entrelaçar com a efervescência cultural negra e queer da época, tornando-se um espaço fértil para a expressão artística e comunitária.
Mais adiante, nos anos 1960, concursos de beleza entre drag queens e pessoas trans tornaram-se comuns. As que não correspondiam ao padrão branco e europeu de beleza eram sistematicamente excluídas. Drag queens negras, mesmo quando participavam, raramente eram premiadas. A insatisfação diante desse racismo culminou em um marco histórico: a revolta de Crystal LaBeija, mulher trans e drag queen negra, durante um concurso manipulado. Junto a Lottie LaBeija, Crystal fundou, em 1972, a primeira ball organizado por uma house, a lendária House of LaBeija.
A partir dali, o modelo de organização por casas — estruturas que funcionam como famílias escolhidas, onde mães, pais ou pães acolhem seus filhes — se fortaleceu. Essas casas se tornaram lugares de cuidado e preparação para os balls, onde diferentes categorias desafiam normas de gênero, estética e comportamento em performances marcadas pela técnica, criatividade e afirmação de identidade.
Ixtranhesa potiguar
Foi em meio à pandemia que a artista potiguar Aisha Lemos se aprofundou no universo do vogue, por meio de aulas online com Shock Ixtranha, fundadora da Casixtranha, em São Paulo. A conexão entre as duas foi imediata. Aisha, que já transitava por diversas linguagens artísticas, encontrou na cultura Ballroom um campo fértil para expressar sua potência — e, mais do que isso, para criar um espaço seguro e coletivo em sua cidade. Ao manifestar o desejo de fundar uma house em Natal, recebeu o convite para abrir um capítulo da Casixtranha no Rio Grande do Norte.
O anúncio oficial do novo capítulo ocorreu em 2023, durante a The Tropicaly Ball, realizada na Paraíba. Na ocasião, Aisha e Yorran foram apresentadas como integrantes da família Ixtranha.

Desde então, o que era semente virou corpo em movimento. A Casixtranha RN juntamente com lideranças de outras casas do estado como Casa de Acúenda e Casa da Baixa Costura, passaram a promover treinos abertos ao público e encontros regulares voltados não apenas ao ensino de técnicas do vogue, mas também à formação de vínculos. Esses treinos tornaram-se espaços de acolhimento e fortalecimento, especialmente para juventudes LGBTQIAPN+ negras e periféricas. Em um cenário pós-pandêmico de retrações culturais, o capítulo potiguar tornou-se um dos principais incentivadores de práticas coletivas na cidade.
Hoje, com sete membros ativos, a Casixtranha RN já marca presença em importantes eventos culturais de Natal. No Festival Bloquíssimo, realizado no início de 2024, a house levou ao palco narrativas com a mesma força com que disputa nas Balls.
A Casixtranha
Fundada no interior de São Paulo, a Casixtranha nasceu da ausência de espaços seguros para a expressão artística e afetiva de pessoas LGBTQIAPN+ em Araraquara. “Éramos uma segunda família uma para a outra”, relembra Shock Ixtranha, Overall Mother da casa. Foi dessa vivência de cuidado e criação coletiva que surgiu o desejo de expandir a house para outras regiões do Brasil.
“Nos conhecemos pelo Instagram. A gente admirava muito a arte e o jeito uma da outra. Quando ela me contou que estavam querendo abrir uma casa em Natal e que a cena lá estava começando a borbulhar, surgiu em mim o desejo de fundar a Casixtranha por lá, porque eu via muita potência e ixtranheza nas pessoas de Natal”, conta Shock sobre sua conexão com Aisha.
Para ela, ser uma casa na Ballroom vai além de adotar um nome. “É construir uma rede de apoio que se manifesta no cotidiano e nas performances. A Casixtranha RN me lembra muito os primórdios da Casixtranha. O desejo das Ixtranhas de Natal em fomentar, construir, aprender e entregar qualidade no que fazem é algo estonteante pra mim. Me faz sentir que valeu a pena criar a Casixtranha.”
Essa sintonia é visível nos palcos e fora deles. “Vejo no RN uma conexão profunda entre afeto, performance e moda. Isso contribui diretamente para o sucesso da Casixtranha no estado.” Participações em eventos como o Bloquíssimo e o Festival MADA ampliam a visibilidade da cultura Ballroom. “Estamos celebrando a nossa vida e afirmando que estamos aqui para ficar”, conclui.
Yo Ixtranha, Princess da Casixtranha RN e ume des principais articuladores da cena local, destaca o papel central das formações e treinos na construção de comunidade: “São nesses fomentos de treino e formação que laços começam a ser construídos. É nossa principal ferramenta para propagar os fundamentos da cultura Ballroom.”




Elu também aponta os desafios enfrentados para manter os eventos: “Nossa comunidade tem feito muito com pouquíssima verba, às vezes, com nada. Apesar de alguns avanços com editais públicos, ainda falta muito para que todes tenham acesso e consigam realizar grandes bailes”.
A Casixtranha RN segue sonhando com mais. “Enxergamos um futuro próspero e temos a expectativa de conquistar cada vez mais acessos, ocupando mais espaços”, releva Yo.
Águas Turvas, corpos visíveis
No dia 18 de maio, às margens do Rio Potengi, a Casixtranha Capítulo RN realiza seu segundo baile próprio: a Bailixtranha: Águas Turvas. Carregando em seu nome a força poética da água e a estranheza como potência estética e política, a Bailixtranha nasce em diálogo com o território e com os corpos que nele resistem.

Na edição “Águas Turvas”, o Rio Potengi foi inspiração e guia. “Queríamos provocar a comunidade a refletir sobre qual é a identidade do povo potiguar. Cada categoria foi pensada para resgatar aspectos culturais da vivência local, usando as linguagens artísticas da Ballroom.” A ideia surgiu durante um momento de contemplação: “Estávamos assistindo ao pôr do sol no Complexo Cultural da Rampa, olhando o Potengi e refletindo sobre tudo isso”, explica Yo Ixtranha.
A Águas Turvas representa em termos políticos, o empoderamento da identidade cultural potiguar contemporânea, trazendo a reflexão aspectos não só ligados a nossa ancestralidade, mas ao rio, o mangue, o mar, a pesca, a cultura urbana e periferica da nossa região. “[…] lembrar que antes da colonização das terras eram habitadas por vários povos indígenas e mesmo assim, o RN é o único estado do Brasil que não tem terras indígenas demarcadas. Então assim, a Águas Turvas é uma tentativa de fazer o resgate cultural do nosso povo”, finaliza Princess Yo Ixtranha.
Com nove categorias e prêmios em dinheiro, o baile também se afirma como um gesto de valorização das trajetórias artísticas de quem faz a cena acontecer. Mais do que performar, os competidores trazem para a passarela suas histórias e estéticas. A ball se torna, assim, um espaço onde as fronteiras entre arte e política, festa e enfrentamento, desaparecem em caminhadas preciosas.
A proposta da Casixtranha com o Bailixtranha é reivindicar o direito à existência pública, visível e celebrada de corpos que historicamente foram empurrados para a marginalidade. Essas presenças ocupam com beleza, técnica e ancestralidade uma das paisagens mais simbólicos de Natal — o rio que corta e define a cidade.
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