Há um rio que nunca parou de correr dentro de mim.
Um rio feito de lembranças que não são minhas, mas me atravessam como se fossem. Um rio que nasce no Araguaia, passa pela pele do meu pai marcada pela tortura, deságua no grito silenciado da minha mãe e ressurge, sem descanso, na voz que carrego hoje.
Foi esse rio que encontrei, com os olhos marejados, ao ler o artigo de César Alessandro Sagrillo Figueiredo e Maria Leal Pinto: O Araguaia depois da guerrilha: diálogo entre a resistência memorialista e a reprodução fílmica. Ali, entre palavras que costuram o testemunho de Glênio Sá e o filme O Pastor e o Guerrilheiro, vi meu pai de novo. Vi suas escolhas, seus medos, sua coragem. E vi, mais do que tudo, o silêncio imposto à sua história — e à história de tantos.
Meu pai sobreviveu à ditadura, mas nunca foi devolvido por inteiro. Carregou o peso de ter escapado onde tantos tombaram. Carregou o compromisso de falar, mesmo quando o mundo parecia querer esquecer. Seu Relato de um Guerrilheiro é um gesto de resistência e ternura. Porque há ternura na memória que insiste em existir, mesmo depois de tanto apagamento.
O artigo reconhece essa entrega. Mostra como sua narrativa não é só individual, mas coletiva, insurgente, cheia de gente. Mostra também como o filme, ao imaginar um reencontro impossível, revela que as feridas seguem abertas — e que o que mais falta no Brasil é justamente escutar os ausentes.
Eu nasci de uma história contada às pressas, entre a urgência da luta e o medo da repressão. Nasci na clandestinidade. Cresci ouvindo que meu pai tinha sido morto pelo regime. Mais tarde, soube que ele resistira — mas a morte, naquele tempo, era mais do que ausência física. Era a tentativa sistemática de apagar corpos, ideias, afetos.
Hoje, como presidenta do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Norte, luto para que esse rio não seja represado. Luto com outras filhas, outros netos, outros companheiros de quem não esquece. Porque lembrar é também um modo de amar. E de insistir.
O Araguaia não acabou. Ele segue em cada história que se recusa a morrer. Em cada voz que se levanta contra a mentira. Em cada imagem, cada livro, cada filme que ousa contrariar o esquecimento.
Meu pai dizia que o Brasil tinha uma dívida com os seus mortos. Hoje, eu repito: nós não esquecemos. Porque há rios que nunca param de correr.
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