Numa decisão inédita e histórica, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou, por unanimidade, que uma pessoa seja registrada com identidade de gênero neutra nos documentos civis. O julgamento, realizado na última quarta-feira (7), representa uma vitória fundamental na luta por direitos da população LGBTQIAPN+ e amplia o reconhecimento jurídico de identidades não-binárias no Brasil.
O caso envolve uma pessoa que, após passar por procedimentos médicos para afirmação de gênero, percebeu que sua identidade não se enquadrava nas categorias binárias de homem ou mulher. Diante disso, recorreu à Justiça para reivindicar o direito de ser reconhecida conforme sua vivência e subjetividade — como alguém que não se identifica com nenhum dos dois polos do sistema de gênero dominante.
“Não era aquilo que estava passando no coração e na cabeça dela. Eu fiz uma pesquisa, a questão é muito dramática”, afirmou a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi. O reconhecimento, segundo a ministra, é um passo para uma Justiça mais empática e conectada às complexidades das vivências trans e não-binárias.
Para além do simbolismo, a decisão do STJ confronta a rigidez de normas cis-heteronormativas que ainda dominam as estruturas jurídicas brasileiras. Embora o país não tenha uma legislação específica sobre gênero neutro, o tribunal reiterou que o direito à identidade autopercebida é parte essencial da dignidade humana — princípio basilar da Constituição Federal.
Ativistas potiguares comentam
Geja Muniz, pessoa trans não-binária e militante do coletivo Cores (Coletivo Revolucionário Socialista LGBT), afirma que o reconhecimento jurídico é apenas o primeiro passo. “Que isso de fato não seja uma decisão do papel, mas que mude a vida das pessoas trans não-binárias dentro do país. […] A maior violência que acontece contra nós vem justamente do Estado, quando apaga e negligencia nossa identidade”, afirma. Para Geja, o direito ao gênero no documento é também uma ferramenta para “mapear as violências” e fomentar políticas públicas. “Nosso país é o que mais mata pessoas trans e travestis. Precisamos de instrumentos concretos de combate à opressão”, acrescenta.
Para Arara Lima, militante do Levante Popular da Juventude, reconhece a importância simbólica do julgamento, mas destaca que ele ainda não tem efeito vinculante. “Foi só um caso único, de uma juíza. Não é suficiente”, pontua. Para Arara, é preciso intensificar os debates nas comunidades e escolas sobre o que é ser uma pessoa trans não-binária: “A sociedade ainda não está preparada para compreender nossas identidades. Existe muita violência, inclusive dentro do próprio movimento LGBT. Mas ver esse debate crescer, principalmente entre a juventude, já é um sinal de avanço.”
Ambes apontam que, sem mecanismos de aplicação e garantia dos direitos, o reconhecimento judicial pode se tornar mais uma promessa vazia.
Reconhecer é reparar
Sem amparo legal direto, mas com base em decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) e na leitura constitucional dos direitos humanos, o STJ optou por construir uma jurisprudência que repara, ainda que tardiamente, a exclusão histórica de pessoas que desafiam a normatividade de gênero.
A posição do Conselho Federal de Medicina (CFM), ainda marcada por diretrizes restritivas e ultrapassadas, não impediu o avanço do Judiciário. O reconhecimento do gênero neutro sinaliza uma ruptura com a lógica binária compulsória que domina as instituições brasileiras e reforça o papel da Justiça como espaço de transformação social.
Esta é a primeira vez que o STJ reconhece oficialmente o gênero neutro em um registro civil. A decisão cria jurisprudência e abre caminho para que outras pessoas não-binárias ou de gênero fluido busquem o mesmo direito, de serem nomeadas e reconhecidas como são, sem apagamentos.
O julgamento marca um divisor de águas no debate sobre cidadania e identidade no Brasil, estabelecendo que corpos dissidentes possam ter acesso integral a seus direitos.
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