Legendários. Na primeira vez que li esse termo em reportagens nos últimos tempos me pareceu se tratar de um grupo de super-heróis (ou vilões), tipo Os Vingadores, X-Men ou Esquadrão Suicida. Ou ainda nome de banda de rock. Nada disso. A leitura atenta das reportagens e uma pesquisa básica me fez descobrir que se trata de um movimento cristão voltado para homens, fundado na Guatemala em 2015 cuja ideia é “promover a transformação de homens e famílias, por meio de experiências que levam os homens a encontrar a melhor versão de si mesmos e seu novo potencial” com ênfase nos valores masculinos, seja lá o que isso significa.
Para esse propósito, a maior parte dos eventos combina pregações religiosas com atividades físicas intensas, sendo a principal delas subir em montanhas. Também há a ideia que os participantes frequentem a igreja todos os domingos. “Legendário, hoje é dia de comunhão na fé com nossos irmãos e de buscarmos ao Legendário #001”, diz o perfil oficial do grupo nas redes, se referindo a Jesus. Ou seja, preocupação com a parte física mas também espiritual, digamos.
Parece saudável e até inofensivo, não é mesmo? Mas não é bem sim. Inclusive, nem é de graça. As opções de experiências, digamos, têm preços variados custam de R$ 450 até mais de R$ 80 mil, como no caso de eventos como o Top Track Outdoor Potential, que consistem em quatro dias de “conexão com a natureza e intensas caminhadas”, como explica o porta voz no grupo nas redes. Em uma matéria, li que um misto de pregador e coach explica que esse tipo de evento “intenso” ajuda “os homens a se tornarem homens”.
Então, é isso mesmo: os caras estão pagando 80 mil reais para subirem montanha para passar quatro dias com outros homens para “virar homem”. Mas afinal, o que é ser homem?
Vamos sair da ironia para a sociologia, ainda que de botequim: esse tipo de movimento como o Legionários, faz parte de um movimento maior chamado Masculinismo, que predica que a superioridade masculina e que as mulheres atualmente querem rebaixar os homens. Enfim, uma mistura pavorosa de machismo, misoginia, religiosidade tosca e canalhice que vem fazendo sucesso entre homens inseguros e entre jovens, no caso desses gerando o que se denomina como “incels”: jovens celibatários involuntários que ganham ódio às mulheres por não conseguirem aproximação saudável com elas. Tema bordado na impactante e conhecida série inglesa “Adolescência”, na Netflix. Trata-se da chamada “machosfera” repleta de jovens e adultos sem vínculos reais com mulhgeres, com capacidade inclusive de planejar atentado a bomba em show da Lady Gaga, como vimos.
Portanto, respondendo à pergunta anterior: para parte da população masculina atual, ser homem consiste em exalar “valores masculinos” que estariam sendo perdidos. Como virilidade, aspectos masculinos físicos (barba, pelos, músculos), além de voltar aos tempos do macho provedor e da mulher submissa, bela, recatada e do lar, como diria Marcela Temer.
Na verdade, esse perfil de homem é justamente o que teme o empoderamento e as conquistas femininas e desenvolve uma masculinidade tóxica, que tanto pode ficar no rancor silencioso como pode desaguar para agressividade, incluindo aí violência física e feminicídio. Neste combo de insegurança e incapacidade de compreender esse novo mundo onde as mulheres (pasmem) têm (ou devem ter) os mesmos direitos que historicamente sempre foram dos homens, essa turma inventou isso de resgatar “valores antigos”, ou seja, os bons e velhos tempos, para eles, onde os homens mandavam nas mulheres como um misto de troféu, empregada e reprodutora.
Daí essa neura dos homens “viraram homens”, “voltarem a ser homens” ou “resgatar os valores masculinos”, através de métodos e bem suspeitos, além de caros, claro, pois como se sabe, todo dia saem de casa um malandro e um otário, para se encontrar em algum canto. Se tem alguém disposto a pagar uma dinheirama para “ser homem” há de ter alguém para ensinar, mediante remuneração, isso para ele. Sarcasmo à parte, é triste ver que esse “aprendizado” para ser homem se limita aos clichês históricos já citados e a uma noção vaga e patriarcal se como um homem deve se portar. Nem vou adentrar aqui as piadas de redes sociais resultantes disso e nem as possíveis ironias sobre como alguém vai aprender a ser homem numa montanha com outros trinta homens, algo, inclusive, que remete a um “Brokeback mountain” coletivo. Não me entra na cabeça que se precise lutar para ser homem, sem nem abordar questões de gênero, sexualidade e identidade, que dariam outro textão.
O triste mesmo é que esse pessoal não fala em ser feliz, ser boa pessoa, ser produtivo. Simplesmente quer “ser homem”. No sentido mais medieval da palavra. Um ideal entre o romântico e o utópico que seria um prato feito para Freud. Seria cômico se não fosse trágico e potencialmente perigoso.
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