Como é viver na “invasão da invasão” do Residencial Magalhães?

Quem vê o mato seco e o lixo em cores sóbrias e frias que nele está espalhado ao redor da casa de madeira com telhado de palha, sem CEP, no “Nem-Nem” do Residencial Magalhães, não imagina o calor afetivo que reside dentro dela. O dono, seu José Antônio, vem de longe pedalando sua bicicleta surrada com um boné tapando o sol de sua pele já enrugada pelas preocupações acumuladas de toda uma vida repleta de inseguranças e vulnerabilidades, só para apresentá-la.

O residencial em que o homem de 57 anos e sua esposa moram é composto por 1.500 casas populares do Programa Minha Casa Minha Vida que nunca foram entregues e por outras dezenas, erguidas do zero pelas mãos de outros Josés. A ocupação aconteceu em abril de 2019 e configura o Magalhães como um dos bairros mais recentes e mais pobres de Marabá, no sudeste do Pará.

Com grande modéstia no vestir e falar, José convida a reportagem a entrar em sua casa e logo puxa cadeiras de plástico para a equipe se sentar. Não há asfalto, poste de energia, abastecimento de água e, muito menos, saneamento. A peleja é a protagonista. Cansado fisicamente do bico que arrumou como capinador por R$ 85 a diária, ele sacode os resquícios da batalha da camiseta e se põe a contar sua crônica quase sexagenária.

Filho de Manoel Damião e Maria Nazaré Correia, José foi criado por um padrasto, pois perdeu contato com o pai biológico ainda ameninado. O genitor enfrentava sérios problemas de saúde mental e era internado com frequência em um asilo: “Eu era pequeno quando meu pai foi embora e minha mãe arrumou outro marido, mas também não foi bom. Ele só bebia, judiava dela”, recorda José.

Inesperadamente, ele leva o indicador e o polegar da mão direita aos olhos e, desnudando sem querer a alma para meros conhecidos, tenta conter, em vão, o choro doído que chega de mãos dadas às lembranças.

“De comercialização de ração de galinha a carregar barro, plantar cana a serviço braçal em fazendas do bairro São Félix”, relata como ganha os trocados. Mas, não é que ele tenha sempre como colocar comida dentro de casa. Para despistar a miséria, se submete a jornadas molestas de longas horas. As mãos que são levantadas para agradecer aos céus o que com muito custo é colocado em cima da mesa, não podem esperar que do alto, algo caia.

José faz parte das mais de 22 mil famílias marabaenses que vivem em pobreza extrema. Dados levantados pela reportagem junto ao Portal de Transparência do Governo Federal, que tem como base atualizada o mês de abril de 2024 dão conta que tamanha desigualdade assola 22.789 casas na maior cidade do sudeste do Pará.

Ainda de acordo com os números, há 58.890 famílias cadastradas no Programa Bolsa Família, sendo que 10.654 estão na denominada “situação de pobreza”. Outras 13.129 são consideradas de baixa renda e 12.318 recebem acima de meio salário mínimo.

Para contornar o cenário, José cultiva grãos, frutas e legumes variados em seu quintal. Além dos alimentos, um minúsculo e improvisado curral guarda três leitões que são engordados durante meses e servirão, quando a estiagem monetária e agrária gritarem, como escape do ronco da fome.

Naquela terça-feira pela manhã, quando José abria as portas do lar e, principalmente, do âmago, seus sonhos tão simplórios e, pelo corre-corre tão deixados de lado, foram revisitados: “Queria uma terra minha, pra criar minhas galinhas, meus porcos, um gado. Um lugar pra eu cuidar e saber que é meu. Para mim, enriquecer não é futuro, porque quando a gente morre, não leva nada. O importante é viver bem, sem perturbar ninguém, em paz”.

Toda a vida material de José cabe em quatro linhas. Para contextualizar, a medida de uma linha é uma forma tradicional de medir terras no Brasil e costuma equivaler a 66 braças (cerca de 132 metros). Usada historicamente em atividades agrícolas e no cálculo de áreas rurais, podemos pensar nela como uma régua invisível que mede a extensão da terra, o quanto o horizonte se alonga em braçadas.

Mas, mesmo em meio as tantas dificuldades, ele surpreende com a autarquia: “A alegria que eu quero é acordar e ver que tá tudo bem. Que a comida tá na mesa, que meus amigos e minha família tão em paz. O que adianta ter muita riqueza e não ter saúde? A alegria tá em viver bem o dia a dia”.

Sem água, sem energia, sem infraestrutura básica

 

Em 2023, a cidade de Marabá foi considerada a segunda pior em serviço de água e esgoto entre as 100 maiores do País. A informação vem de uma pesquisa realizada pelo Instituto Trata Brasil e traz indicadores sobre a água, coleta, tratamento, esgoto e investimentos na área.

Os dados informados na pesquisa mostram que um total de dez municípios que possuem 100% de coleta de esgoto no Brasil, e outros 28 que possuem índice de coleta superior ou igual a 90%.  Porém, o menor percentual de população atendida com serviço de coleta de esgoto na amostra foi de 0,73% no município de Marabá.

Para minimizar o cenário de pobreza, a família planta o que pode no quintal de casa para sobreviver

Além de estar na última posição do serviço de coleta de esgoto, Marabá também integra a lista dos piores indicadores de tratamento de esgoto. Segundo o Trata Brasil, apenas 2,26% do volume total de esgoto é tratado.

Em relação a atendimento total de água, ou seja, dados sobre a população com acesso a água potável, Marabá também integra os piores indicadores do país. Apenas 32,89% da população possui água potável. Atualmente, o nível da média brasileira é de 84,20%.

Para driblar o abandono estatal, José cavou seu próprio poço: “Foi no verão passado, porque a seca foi brava. A água é boa e a gente nunca precisou buscar na casa de ninguém”, conta, orgulhoso de, hoje, ter como se virar. Sem chuveiro, ele mostra que a água coletada no reservatório também serve para os banhos com balde e vasilhas de plástico que ele usa também para cozinhar, beber e lavar roupas à mão.

Outra situação contornada por ele é a escassez de energia elétrica. “Aqui, tem hora que funciona e tem hora que não. A gente se vira como pode, mas é complicado”, diz, acrescentando que com o apoio de vizinhos, conseguiu comprar uma ‘rede elétrica’, o que não garante que as noites e os dias sem eletricidade não façam parte de sua realidade.

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