Um sopro da jurema-preta pode se tornar, em breve, um divisor de águas no tratamento da depressão resistente. Pesquisadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) demonstraram, em artigo publicado no periódico Neuropsychopharmacology, que a inalação de dimetiltriptamina (DMT) extraída da planta nativa da caatinga gera efeito antidepressivo imediato, sustentado por até três meses.
O estudo clínico de fase 2 envolveu 14 pacientes diagnosticados com depressão resistente — condição que persiste mesmo após o uso de dois ou mais antidepressivos convencionais. Os resultados são contundentes: 11 participantes apresentaram melhora já no dia seguinte à aplicação, dez entraram em remissão e, três meses depois, cinco mantinham o estado sem sintomas, enquanto outros três continuavam significativamente melhor.
O protocolo desenvolvido pela equipe liderada pelo neurocientista Dráulio de Araújo consiste em duas inalações: uma dose inicial mais leve (15 mg), seguida, após 1h30, de uma dose mais intensa (60 mg). A intervenção total dura menos de 30 minutos e evita os efeitos colaterais comuns da ayahuasca, como náusea e diarreia, além de dispensar o uso de inibidores de MAO, substâncias presentes na bebida amazônica.
“Queríamos estudar a molécula de forma isolada, sem os efeitos adicionais da ayahuasca, mas ainda conectados ao saber tradicional da jurema”, explica Araújo, em entrevista . O grupo de pesquisa da UFRN tem se destacado desde 2018, quando publicou um dos primeiros ensaios clínicos com ayahuasca para tratar depressão. Agora, com a DMT inalável, dá um passo além.
Segundo os autores, a principal inovação do novo protocolo está justamente na via de administração. “É a primeira vez que a DMT é aplicada por inalação em pacientes com depressão resistente, o que representa uma via não invasiva e de rápida absorção”, destaca o psiquiatra Marcelo Falchi-Carvalho, coautor do estudo ao lado da neurocientista Fernanda Palhano-Fontes.
O estudo também priorizou o cuidado psicológico durante a experiência psicodélica, algo que difere dos modelos tradicionais de psicoterapia assistida por psicodélicos. “Nenhum voluntário apresentou reações adversas graves. Criamos um ambiente acolhedor, o que foi essencial para que todos atravessassem a experiência com segurança”, afirma Araújo.
Caminho até o SUS
A pesquisa caminha para a fase 3, com dezenas de pacientes e metodologia mais robusta, incluindo controle por placebo. A meta é, no futuro, integrar o tratamento à rede pública de saúde, como já acontece com a cetamina. “É uma possibilidade real, mas exige planejamento, financiamento e regulação”, afirma o pesquisador. “A curta duração da experiência com DMT pode facilitar sua adoção no SUS.”
Entre os principais desafios, ele cita a necessidade de centros especializados, treinamento de profissionais e garantia jurídica para o uso da substância. O uso de psicodélicos ainda enfrenta estigmas e obstáculos regulatórios, apesar do avanço de pesquisas semelhantes na Europa e nos Estados Unidos, onde a psilocibina — substância de cogumelos “mágicos” — está em estágio avançado de testes.
Ciência e ancestralidade
Embora o estudo tenha sido realizado com cultivo próprio da planta e extração laboratorial, os pesquisadores reconhecem as raízes espirituais da jurema-preta, historicamente usada em rituais indígenas e afro-brasileiros. “A ciência moderna tem muito a aprender com os saberes tradicionais. Essa relação precisa ser ética e respeitosa”, diz Araújo.
Nesse sentido, o grupo participa, em maio, do I Seminário de Medicinas Ancestrais Jurema, no território indígena Truká, em Orocó (PE), como forma de aproximação e diálogo com as comunidades guardiãs da jurema.
Próximos passos
O artigo, que repercute nacional e internacionalmente, confirma o protagonismo da UFRN no emergente campo da psiquiatria psicodélica. “Recebemos com alegria e responsabilidade, os resultados são preliminares, mas promissores. Nosso protocolo parece seguro e eficaz. Agora precisamos refletir sobre como avançar com agilidade e justiça.”
Se a DMT de jurema-preta vencer as etapas regulatórias e clínicas, o Brasil poderá oferecer ao mundo uma alternativa terapêutica de base nacional, acessível, rápida e inspirada em saberes ancestrais — uma verdadeira convergência entre ciência e floresta.
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