Da urgência das entregas

A ativação da exposição EntregaDores: uma coreografia invisível das cidades, de Zaca Oliveira, com curadoria de Pablo Lemos e cocuradoria de Mel Nascimento, Saturno Oliveira e Vitor Barbosa, surpreendeu as pessoas presentes na noite de 14 de março, no Goethe-Institut Salvador. Com o salão principal lotado, o curador conduziu as falas, que se iniciaram com um pronunciamento em alemão de Friederike Möschel, diretora do instituto, sobre a importância de se pensar sobre a disponibilidade ilimitada com a qual conta-se com os serviços de entrega no Brasil – na Alemanha, há horários estipulados para seu funcionamento.Pablo deu seguimento ao texto da abertura, com 10 perguntas as quais a exposição toca: “1. Quem são os corpos invisibilizados que mantêm a cidade em movimento? 2. O que significa existir em trânsito, sem lugar de chegada? 3. A cidade enxerga os entregadores ou apenas as entregas? 4. Se o vermelho é a cor da urgência, da pressa, do desejo – também é a cor do sangue? 5. Até onde um corpo aguenta ser apenas meio e nunca destino? 6. Quando a entrega se torna sacrifício, ainda há retorno? 7. Quem determina quem é essencial e quem pode ser descartado? 8. Se cada trajeto desenha um mapa, que cartografia é essa de exaustão e resistência? 9. A que ritmo se move a cidade – e quem dita essa coreografia? 10. Quando um corpo se dissolve na paisagem urbana, o que resta dele?”.Posteriormente, a cocuradoria apresentou a potência crítica das obras sob o olhar atento do público, que os seguia promovendo mais uma coreografia entre no salão. Ao final, Pablo chamou a atenção para si, solicitando três vivas para os entregadores de todas as pessoas presentes e conduziu o público para a parte frontal do instituto.Ao chegarmos lá, três entregadores com suas mochilas vermelhas promoveram uma performance ao redor do obelisco da calçada. O barulho era intenso das motocicletas girando à sua volta. A lembrança do número circense do Globo da Morte foi imediata – a estrutura metálica montada no picadeiro, primeiro um, depois dois e até três motociclistas a adentravam, sem parar de acelerar a girar em toda a sua extensão, promovendo um jogo de destreza, luz e zunido intenso, colocando em perigo extremo os condutores das motos.Direitos humanosA proximidade do perigo que ronda os entregadores na vida real é conhecida por nós, no cotidiano violento a que sua condição os coloca: trânsito intenso, falta de direitos trabalhistas, diversas violações dos direitos humanos ao conduzir a entrega para as pessoas destinatárias, jornadas extensas e extenuantes.As esculturas de 2024, Subserviência, na qual temos um entregador agachado com o peso da mochila vermelha sob as costas, e Cooptação, na qual o entregador está amarrado com as faixas da mochila, tendo inclusive uma em sua boca, como uma mordaça, conduzem nossa fruição estética para a agonia de compartilhar o tempo contemporâneo com sua condição e situação.A escultura Irmã Dulce, que traz a santa baiana cuidando de um entregador assinala uma lufada de fé no dia a dia do trabalho. A tela Guardado representa um entregador em uma moto, com um anjo ao seu lado, remarcando que assim como as agruras, Zaca Oliveira está atento para a multiplicidade das realidades experimentadas.Em uma segunda sala, o artista se posiciona com a escultura Desde menino, é palestino, que tem a representação de um entregador crucificado, aludindo o seu sofrimento ao de Jesus, e assim conectando a exposição com a questão global urgente do território da Palestina, o genocídio israelense em Gaza.Em entrevista concedida no Goethe-Institut Salvador, depois de uma aula aberta para uma turma de estudantes da Escola de Belas Artes da Ufba, onde obteve sua licenciatura, Zaca afirmou que o olhar para os entregadores faz parte de seu cotidiano no Bairro Cruzeiro, na Cidade Baixa.Durante a pandemia, observar as movimentações das entregas pelos prestadores de serviço, em sua maioria jovens, fazia parte dos momentos de distração pela janela na rua. “A forma daqueles corpos, com roupas pretas e a mochila vermelha nas costas, me chamou muito a atenção; foi o que eu primeiro experimentei criar”.O artista contou também que surpreendeu mais de uma vez entregadores de água ao se encontrarem nas telas e esculturas que estavam disponíveis na sala, no tempo da criação das obras que integram a exposição. Algumas obras também foram requalificadas a partir da motivação para trabalhar a temática dos entregadores.A tela Encaixar, produzida entre 1999 e 2025, é uma das que foram reaproveitadas, trazendo entre o preto e o vermelho os encaixes e números que prendem as mochilas aos corpos dos trabalhadores de entregas. A obra ganha uma dimensão 3D com um par de encaixes acoplados a uma das quinas da moldura.A tela Bróder, de 2023, traz dois jovens usando blusas amarelas, mochilas vermelhas e capacetes azuis. Ambos têm um sorriso tão grande no rosto que seus olhos estão fechados, talvez a rememorar todos os momentos alegres que poderiam ter vivido juntos em tempos anteriores ao do trabalho precarizado.Pode ser possível que essas alegrias, que os estabeleceram irmãos de caminhada, tenham sido vivenciadas no morro que está estampado como fundo do encontro em primeiro plano, com pequenas moradias empilhadas, cada uma com sua luz compondo a comunidade. O abraço se estabelece lateralmente, parece que um dos dois segura o guidão no fora de campo da tela. Os sorrisos ampliam a alegria para toda a extensão do salão de exposição, lembrando como a solidariedade entre os entregadores ultrapassa sua condição de trabalho, embora ela seja o liame que os fortalece diante de cada negociação.Breque dos appsNo dia da entrevista, o primeiro breque dos apps de 2025 acontecia nas grandes capitais, mostrando a toda gente a diferença que seu trabalho faz, fazendo pesar as demandas por taxa mínima de corrida, pagamento múltiplo mesmo quando as entregas são programadas em uma mesma rota, auxílio de saúde, e morte para as famílias, quando o inevitável acontece.A obra Entregadores (2025) trabalha mais uma vez a dimensão da multiplicidade dos corpos dos trabalhadores uberizados – como Zaca afirma mais de uma vez – suas motos, mochilas e capacetes, explorando o estudo de cores em relação à horizontalidade da tela.As motocicletas que são a base do trabalho têm as cores cinza-chumbo, com áreas em branco e amarelo, pelos faróis. Os espelhos retrovisores mesclam com os reflexos do vermelho das mochilas, dos corpos e rostos indefinidos, que se misturam com as bags e não têm correspondência estrita com as motocicletas.A terceira faixa de cor é trabalhada no azul, que preenche alguns rostos e cabeças, mas também a noite que tem uma lua cheia em seu esplendor, branca, na mesma cor dos capacetes, que servem para proteção das cabeças dos entregadores, mas que na tela são representados como apoiados nas testas, deixando os rostos sem mediação do item de proteção pessoal.Sonhos suspensos (2025) é uma obra instalativa, que alia a escultura ao uso de materiais reciclados, como em outras obras, entre eles a suspensão de uma mochila de entregas. A figura do entregador, que estende o braço buscando alcançar a mochila, usa um chapéu e nariz de palhaço. Zaca utiliza em mais de uma obra a alegoria do palhaço “que faz os outros rirem, mas no fundo é uma pessoa triste”, relembrando dos circos que visitava quando criança.Em sua cintura, o palhaço entregador tem uma buzina presa ao cinto, lembrando da sonoridade que acompanhava a risada circense. Aos seus pés está um cachorro, ou melhor, uma cachorrinha, que representa Meuri, mascote de Zaca que partiu no meio do processo de finalização das obras para a exposição.Meuri era um grande amor para o artista, que conquistou um público imenso nas redes sociais a partir dos vídeos em que contracenou com ela. A obra, que está posicionada ao lado do título da exposição, lembra a carta do Louco, no Tarôt, que tem um jovem à beira de um abismo, olhando para cima, acompanhado de um cão.A carta chama atenção à ingenuidade dos sonhos, a alegria de haver caminhos a serem seguidos e a companhia do cão, que protege a figura humana casualmente desavisada dos perigos que a cercam – mais uma alegoria possível para os entregadores. A exposição tem entrada gratuita até o dia 16 de maio.*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal – [email protected]*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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