“Posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”. A frase, que virou marca registrada de Marcos Terena, líder da etnia Xané, também é a máxima que Nádia Akawã Tupinambá traz na ponta da língua quando o assunto é representatividade dos povos indígenas em áreas onde a lente do preconceito ainda não nos permite enxergá-los com naturalidade, como a universidade, a ciência e a política. Há avanços, ela reconhece, mas a luta está longe de acabar e precisa mitigar questões essenciais como o direito à terra.Se você acompanha o noticiário sobre o marco temporal, por exemplo, sabe do que ela está falando. A tese, que prevê que os povos indígenas só tenham direito às áreas que estavam ocupadas por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, foi derrubada pelo Superior Tribunal Federal por ser considerada inconstitucional. Mas um impasse se instalou quando o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei que estabelece a medida, dando início a um processo de conciliação que não avança.“É preciso que a sociedade saiba que não somos nós que estamos errados. Território não pode ser negociado. Se estamos aqui desde muito antes de 1500, por que questionar? Como é que estamos no território e o estado é que decide, com um documento, quem é indígena e quem não é? Tá tudo errado, precisamos repensar esse modelo”, dispara a líder baiana que carrega no nome referências à ave de canto peculiar e ao seu povo de origem, que vive na região de Olivença, em Ilhéus.Formada em Artes e Linguagens, Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Nádia acredita que a busca pela garantia de direitos encontra seu principal desafio na desinformação e na perpetuação de narrativas conservadoras como a do “descobrimento” do Brasil por Pedro Álvares Cabral. Ainda há quem comemore a data, que passou no calendário ainda esta semana. “Os livros didáticos não colocam o Brasil como um país invadido, mas quando os portugueses chegaram já estávamos aqui”, alfineta Nádia.“A colonização não saiu de nós, continuamos sendo vistos como aqueles que não produzem, que são anti-progresso, porque não aceitamos que entrem nos nossos territórios para garimpar, derrubar as árvores e poluir os rios para construir resorts. Também precisamos desmistificar a ideia de que todo indígena tem cabelo liso, pele morena, anda nu, caça, pesca. É preciso mudar esse histórico, e falar do índigena contemporâneo, de como vivemos hoje”, defende a liderança que também carrega a alcunha de “mulher medicina”, graças ao profundo conhecimento sobre técnicas de cura ancestral.As celebrações em torno do dia 19 de abril também não escapam ao olhar crítico de Nádia Akawã Tupinambá. “Muita gente não sabe que essa data para nós é muito mais um símbolo de luto, porque foi o dia em que mataram Galdino”, pontua, lembrando do assassinato de Galdino Jesus dos Santos, liderança do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, que foi morto em 1997, depois que cinco adolescentes atearam fogo ao seu corpo em um ponto de ônibus de Brasília, na madrugada seguinte ao então “Dia do Índio”.Desde 2022, a data passou a ser chamada de Dia dos Povos Indígenas, o que não deixa de representar um avanço, já que a linguagem é um importante demarcador de relações de poder. “O termo ‘índio’ ou ‘caboclo’ é pejorativo porque somos um coletivo. Só na Bahia tem 30 povos diferentes”, exemplifica. Nosso estado possui a segunda maior população indígena do país, ficando atrás apenas do Amazonas. E os números são ainda mais expressivos quando pensamos em todo o Brasil, que, segundo o último censo do IBGE, tem mais de 270 povos falantes de mais de 150 línguas nativas. Com tanta diversidade de saberes e modos de vida, faz sentido pensar que “índio” é tudo uma coisa só?*Daniela Castro é jornalista, mestra em Cultura e Sociedade e criadora da Inclusive Comunicação. Ela assina a coluna Plural sempre no último domingo do mês. [email protected] plurais:Audiovisual: O especial Falas da Terra aposta no humor para lançar um olhar crítico sobre o preconceito e desinformação da sociedade brasileira em relação aos povos indígenas. Com apresentação de Dira Paes e Xamã, o episódio pode ser visto de graça, no Globoplay.Podcast: No episódio 85 de Oi, gente, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz aborda os 825 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, desconstruindo a narrativa oficial do “descobrimento” com dados que contextualizam o momento histórico e os impactos da colonização. Disponível nas plataformas de áudio.Exposição: Ecos indígenas segue na programação no Museu de Arte Contemporânea da Bahia até quarta, dia 30. A mostra reúne obras de artistas indígenas que exploram diferentes linguagens para provocar reflexão sobre memória, modos de vida, espiritualidade e resistência dos povos originários. A entrada é gratuita.
Desafios contemporâneos, resistência originária
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