É terça-feira à noite de uma Semana Santa e o Santuário de Santos Reis, localizado no bairro de mesmo nome, na Zona Leste de Natal, está fechado por volta daquelas 18h30. Mas bem ao lado, colado, um portão se abre para o salão paroquial. No amplo espaço, ao fundo, uma outra porta dá acesso a uma escada que leva ao segundo andar. É lá dentro que mulheres idosas vão chegando aos poucos para a atividade que se inicia às 19h. O intuito, ao menos naquele horário, não tem nada a ver com a religião. São educandas do Reajaí (Rede de Educação e Alfabetização de Pessoas Jovens, Adultas e Idosas), projeto de extensão da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) que se fundamenta na pedagogia de Paulo Freire.
O projeto nasceu em 2022 e atua em várias regiões da cidade, incluindo bairros periféricos. Há desde turmas mais amplas como outras voltadas para públicos específicos. É o caso de uma que atende aos funcionários terceirizados da UFRN ou outra que trabalha com o público LGBT, por exemplo. Em Santos Reis, as participantes são principalmente mulheres idosas que viram naquela salinha dentro do Santuário uma nova oportunidade de se conectar com a educação, como Mirian Mendonça, de 72 anos.
“Eu estudei até os 14 anos, aí meu pai viajava muito e eu parei de estudar. E, antigamente, o estudo era bem diferente de agora. Eu sempre aprendi a ler, escrever, contar, mas tem umas coisas que evoluíram mais na gramática que eu preciso estudar para me aprimorar”, conta a viúva, que tem um filho e duas netas, e não pretende parar de participar da iniciativa da UFRN.
“Enquanto tiver por aqui, eu estou participando. Eu não quero mais me formar, não, porque nessa idade eu não preciso mais me formar, não. Já me formei na faculdade da vida. Tenho muito o que contar”, diz.

Uma das coisas que Mirian tem para contar entrou até para a história de Natal. Quando criança, ela participou do mais conhecido projeto de alfabetização e educação popular da capital potiguar, a histórica campanha “De pé no chão se aprende a ler”. Empreendida pela prefeitura de Djalma Maranhão, a iniciativa funcionou de 1961 a 1963 e foi destituída pelo golpe militar de 1964, quando Maranhão também foi deposto da prefeitura e teve seu mandato cassado. Ele morreu aos 56 anos, em 1971, no exílio em Montevidéu, no Uruguai.
Mirian guardava as memórias da campanha na cabeça, mas pôde relembrar com mais clareza a partir das próprias aulas do Reajaí, quando o professor bolsista, no ano passado, levou o tema para a sala de aula. As aulas da menina aconteciam nas Rocas, bairro ali perto, também na Zona Leste, onde hoje atualmente funciona a Escola Estadual Café Filho.
“Era um galpão grande. No início, não tinha nem onde a gente se sentar. Depois, foram arranjando umas cadeirinhas”, conta Mendonça, enquanto mostra fotos levadas pelo então professor, Perikles Knox Figueira, hoje já afastado do projeto por ter se formado em História na UFRN. A atual bolsista é Rannia Henrique, 25, estudante de Pedagogia.

“Eram barracões de palha, que nem essas barracas que o pessoal faz na praia. Nunca saiu da minha memória”, fala novamente Mirian, sobre o período como aluna na campanha. “Foi uma experiência boa também. Foi de onde eu comecei a minha alfabetização”, diz.
Além da oportunidade de alfabetização, o Reajaí também é lugar de socialização, como para Maria de Fátima, 72, moradora de Santos Reis que descobriu o projeto enquanto papeava na praça que fica em frente ao Santuário.
“Conversando, disseram que aqui estava tendo uma aulinha só para idosos, aí eu me animei. No momento não estou fazendo nada, e uma aulinha assim sempre é bom, para nós conhecermos mais pessoas e se entrosar mais, aí vim desde o ano passado. Eu adoro”, relata Maria de Fátima, que também já entrou sabendo ler e escrever. Neste caso, o Reajaí é um reforço para as mulheres que passaram décadas afastadas das salas de aula — muitas que nem conseguiram concluir o ensino fundamental, como ela própria, que estudou até a oitava série.
“Casei, construí família. Aí, pronto, fiquei cuidando da família, parei de estudar, vim trabalhar, fiquei só na família e não tive mais vontade de estudar, até por causa dos filhos. A gente se ocupa muito de levar e trazer pro colégio, tomar conta de marido, de casa, de tudo. Aí não deu para continuar no estudo, não”, explica ela, que já possui familiaridade com o chão da sala de aula — foi auxiliar de serviços gerais por 15 anos em uma escola no conjunto Santa Catarina, Zona Norte de Natal, e há cinco anos se mudou para Santos Reis para ajudar a cuidar dos dois netos.

“Aqui é mais um reforço, um reforço que a gente às vezes esquece. No momento enquanto ela tá dando ali aquele assunto, aí a gente se lembra que já viu aquilo. É muito bom reiniciar aquilo tudo que eu já vi há muitos anos”, conta a idosa, que tem no apoio da família mais um motivo para continuar frequentando as aulas semanalmente.
“Eles dão a maior força. E os meus dois netos que moram aqui com a minha filha, e eu tomo conta durante o dia até a mãe chegar, eles adoram. Eles vêm até às vezes comigo. Fazem aposta, os dois, que é pra ver quem vem no dia. Eles vêm e participam também”, conta, feliz, Maria de Fátima.
A necessidade de interromper os estudos por causa da família não faz parte de um relato isolado. Também aconteceu com Emília Garcia, de 62 anos, mas em casa o apoio para voltar às aulas já existia antes mesmo do Reajaí.
“Mainha, vá lendo um livro”, incentivava um dos filhos. Quando o padre do Santuário anunciou que iria ter essas aulas, o rapaz insistiu: “vou botar seu nome”. Emília retrucou:
“Não. Eu já estou nessa idade. Vou voltar a estudar?!”.
“Vai, sim. A gente já está tudo formado, agora é a sua vez”, respondeu o filho. A “pressão” funcionou, e ela voltou. Emília é mãe de dois homens — um cursa Serviço Social e o outro é sargento da Marinha.
“Está sendo muito bom, porque a gente está relembrando, voltando a ver as coisas que a gente esqueceu”, diz Emília, que conta até já ter tido vergonha de pensar em estudar novamente.
“Quando foi agora, com todo mundo grande, aí disse ‘agora eu vou voltar de novo’”, relata ela, mais afeita às áreas das Ciências Humanas, como História, Filosofia e Geografia. Hoje, Emília Garcia está aposentada. Trabalhou 30 anos dentro de fábrica e também auxiliou em uma creche. Agora, pensa em continuar estudando e, quem sabe, fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] para tentar uma vaga em Pedagogia.

“Eu tenho muita dificuldade em redação. Então, eu tenho aquele medo, que o povo faz um bicho, que no Enem você tem que ter os pontos na redação. Então, eu nunca quis fazer, porque eu tenho essa dificuldade em redação, em acento e em troca de letras. Mas agora, não. Eu estou melhorando. Eu vejo que eu estou melhorando”, atesta a educanda.
Maria Neide, 64, é outra que estudou na infância e decidiu voltar para se atualizar. Ela chegou a iniciar o segundo grau — atual ensino médio — mas não concluiu.
“A gente vê muita palavra nova e tem que se atualizar. Então, foi isso que fez eu vim para cá”, conta a artesã, que soube das aulas por meio de uma amiga.
Naquele dia, pouco antes da Páscoa, Neide resolveu fazer um agrado. Levou um coelhinho de chocolate para todas as colegas e para a professora. Até o repórter foi agraciado pelo trabalho que veio das mãos da artesã e doceira. Experiente, sabe fazer peso de porta, boneca e até pintura. Neste período, como da Páscoa, também faz ovo, trufa e outros doces, mas antes também já trabalhou em uma creche. Nas aulas do Reajaí, Neide conta que gosta de tudo que vê.
“De português, matemática, das cartinhas que a gente já fez”, explica.

As cartinhas, inclusive, são parte da dinâmica das aulas, que não tem um currículo acadêmico pré-definido. Tudo é construído a partir das demandas e necessidades que surgem a cada dia e em cada turma. Em um dia, o assunto abordado foi o gênero carta.
“Cada uma faz sua carta e depois sai trocando uma com a outra e lendo a carta de uma, lendo a carta de outra. Eu gosto muito”, diz Neide.
Pedagogia freiriana
Outra diferença na metodologia — e talvez você já tenha percebido ao decorrer da leitura desta reportagem — é que lá ninguém é “aluna”. São todas educandas.
“A gente associa muito a escola à formação curricular, àquilo que já vem prescrito para determinadas séries e níveis. Ali [no Reajaí] não. O que vai ser ensinado, o que vai ser estudado parte das necessidades cotidianas. Agora, a necessidade gera exatamente a abordagem dos conteúdos curriculares”, explica a professora Rita Diana de Freitas, docente do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação (DFPE) da UFRN, ligado ao Centro de Educação (CE), e vice-coordenadora do Reajaí, projeto que não esconde que tem como método a pedagogia de Paulo Freire.
Ao invés das abordagens tradicionais da escola, como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) ou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), entram em cena os temas geradores — como o das cartas, para falar sobre português e gramática.
“Nós percebemos, a partir do diálogo com os alunos, um tema, e dessa necessidade que nós pegamos o nosso conteúdo, tanto da parte de linguagens, português, matemática, geografia. Então, nós não chegamos com a necessidade educacional para elas. Nós conversamos e, a partir dessa conversa, nós percebemos como adentraremos esse conteúdo para cá, da melhor maneira”, comenta Rannia Henrique, 25, a atual professora da turma de Santos Reis.
A educadora dá um exemplo com a matemática. Diz que, muitas vezes, ouve um discurso de que as pessoas não sabem fazer conta ou utilizar as quatro operações.
“Mas, quando vê, está indo no mercado e já fez a conta todinha de cabeça. Isso é matemática. Mas fica tão distante essa parte de escola e sociedade que parece que nunca vai se fundir. Quando, na verdade, ela é viva”, ilustra.
No total, a turma tem 14 pessoas. Na noite em que a reportagem esteve no local, seis estavam presentes. Ao longo do período, algumas não conseguem manter a frequência, mas o projeto está sempre aberto a receber novas alunas e esperar o retorno das matriculadas, explica a professora.

“Sempre aprendemos na EJA que nós falamos de cada sujeito, da individualidade de cada um e de como isso reflete em sala de aula. E quando gente vem para cá, a gente entende a dimensão disso. Pode parecer que é um grupo pequeno, mas esse grupo tem impacto dentro de cada casa, que vai ter impacto em cada parte da sociedade”, reflete Rannia.
No Reajaí, também não existem turmas enfileiradas e uma professora à frente de todo mundo. As cadeiras são dispostas em meia-lua, para facilitar a troca.
“Tem o currículo oculto que a gente vê nas áreas de licenciatura, que é aquele padrão de uma cadeira atrás da outra, do professor no centro, detentor do saber. E aqui eu não sou detentora do saber, eu sou uma intermediadora. Eu vou intermediar o conhecimento de cada um para a educação”, afirma.
De acordo com Perikles Knox Figueira — o bolsista do ano passado que levou o assunto da campanha “De pé no chão” para a turma, e hoje já está formado em História, o Reajaí pôde lhe proporcionar uma experiência muito mais completa em sua formação docente.
“De estar ali associando a teoria e a prática do que a gente aprende no curso, mas também do que a gente pesquisa para cada aula, para formular o planejamento, para intervir com qualidade e, efetivamente, experienciar essa questão na prática que é a docência. Isso tudo, na minha experiência, durante a graduação, eu devo muito ao Reajaí”, descreve.

Outro ponto que o agora historiador destaca é a chance de ter atuado em um projeto que se preocupa com as questões sociais.
“Na turma de Santos Reis isso fica evidente. São pessoas que, via de regra, tiveram o seu direito à educação formal negado em algum momento da sua vida. Então, trabalhar com essas pessoas significa também ter uma proposta pedagógica e política que entende que aquilo não é apenas um trabalho técnico, não é apenas um trabalho de passar conhecimento para aquelas pessoas, mas, pelo contrário, exercitar coletivamente essas trocas entre o que essas pessoas viveram toda a sua vida, essas trocas sobre os motivos sociais que fazem a gente estar ali, tanto os educadores e os educandos e as educandas”, acredita.
Para Rita Freitas, a vice-coordenadora, Paulo Freire foi um dos que melhor conseguiu traduzir, no Brasil, como deve ser a educação de adultos, respeitando o contexto onde o adulto está inserido.
“Mostrar que ele é um ser social, que ele é um sujeito de direitos e de deveres. E que esses conteúdos que a gente vai trabalhar fazem parte do cotidiano dele, é importante para que eles desenvolvam as atividades culturais que já desenvolvem, como trabalho, se relacionem com seus pares, com família”, aponta ela, para qual o projeto valoriza esse cenário da realidade em que o sujeito está envolvido.
“Freire leva muito em consideração a leitura de mundo que essas pessoas trazem. Suas histórias de vida, suas relações com os outros. Então, é encantador, porque não vem uma coisa pré-escrita, uma receita de como ensinar essas pessoas. Você vai aprendendo com elas mesmas. Fica mais motivante para o bolsista ensinar, porque eles estão ali numa relação de troca. Tanto o bolsista ensina a partir daqueles conteúdos que ele vai aprender na universidade, como ele aprende com aquele grupo que ele nunca conviveu antes”, descreve Rita.

Continuidade
O Reajaí não é feito somente das aulas uma vez por semana. Por trás dele, há toda uma equipe de professores formadores que auxiliam os bolsistas, que por sua vez têm que dedicar 20 horas semanais ao projeto — aí, entram estudo, planejamento e a própria formação. Tudo isso tem um custo. Inicialmente, o pagamento das bolsas dos estudantes e compra de materiais eram feitos pela própria universidade. Depois, o projeto conquistou uma emenda parlamentar do então senador Jean Paul Prates (PT). Mas, atualmente, esses recursos só garantem a continuidade do projeto até o último trimestre de 2025.
“A gente tem fôlego para funcionar até outubro de 2025, entretanto, se não surgir nenhum outro financiamento, o projeto vai interromper, porque nós não temos a autonomia [financeira]. A universidade não tem recurso para dar continuidade a ele”, lamenta Rita, que diz que o desejo da coordenação é que o projeto se torne um programa, mais amplo.
“Como programa, a gente teria possibilidade de trabalhar em parcerias com outras universidades e alcançar os rincões do Estado, em áreas em que o analfabetismo ainda perdura e ainda tem índice alarmante para os dias atuais. Então, a gente tem interesse de que o projeto se torne um programa, mas, para isso, a gente precisa de recursos”, diz a docente, em sua forma apaixonada de falar sobre o Reajaí e a Educação de Jovens e Adultos. E existe motivo. Ela própria começou a lecionar em turmas de EJA, nos anos 2000, em uma turma noturna de uma escola no bairro de Felipe Camarão, Zona Oeste de Natal, antes de entrar para os quadros da UFRN.
“O Reajaí é um espaço de troca, e o que é mais bonito são os princípios da pedagogia freiriana. Todo tempo você vê os bolsistas falando no diálogo. Pedagogia freiriana valoriza o diálogo. Onde tem diálogo, tem escuta. Tem o que Paulo Freire chama de amorosidade. Você está aberto a ser sensível à realidade do outro. Você vê como aquelas senhorinhas gostam de estar ali, porque ali é muito mais do que uma sala de aula. É um espaço de sociabilidade, de troca, de carinho, de construção, de amizade. É isso que a pedagogia freiriana proporciona”, reflete a docente da UFRN.
The post Projeto da UFRN constrói educação popular em turmas de EJA appeared first on Saiba Mais.