Autores baianos revelam quais são os livros que marcaram suas trajetórias

“Essa é a maior obra da literatura brasileira”, diz o escritor baiano Breno Fernandes ao se referir ao livro Grande Sertão: Veredas, lançado por João Guimarães Rosa em 1956. Depois de adiar a leitura por alguns anos, Breno se deu conta de que o romance escrito pelo mineiro era a porta de entrada para algo maior. Foi por meio de uma narrativa ambientada na mesma região onde Breno foi criado que ele percebeu que era possível escrever sobre a terra de origem sem pedir desculpas ou exigir traduções. “É o sotaque da minha terra que eu trago para meus livros”, diz o escritor. Com a comemoração do Dia Mundial do Livro, na próxima quarta-feira, 23, A TARDE reuniu cinco representantes da literatura baiana para um mergulho afetivo nas obras que deixaram marcas e inspiraram suas trajetórias como leitores e escritores. Além de Breno, Aleilton Fonseca, Kátia Borges, Luciany Aparecida e Ruy Espinheira Filho abrem as estantes e revelam os livros que mais os tocaram, emocionaram e serviram de influência para o que escrevem. Aos 19 anos, o escritor e professor Aleilton Fonseca foi pego de surpresa pela história do livro Essa Terra, do escritor baiano Antônio Torres. Em meio às obras que recorria para dar aulas de literatura e língua portuguesa, o conto do sertanejo que migra para São Paulo em busca de novas oportunidades saltou aos olhos do atual presidente da Academia de Letras da Bahia. “Li de uma vez, em uma sentada”, lembra. O que mais despertou a curiosidade de Aleilton, hoje com 66 anos, foi o ineditismo da temática. A história de Lelo, o jovem que parte do sertão baiano, mas retorna doente, endividado e derrotado, desnudava uma realidade que Aleilton conhecia de ouvir falar. “É a derrota do migrante. Todo mundo acha que ele está bem, mas ele volta acabado”. Acostumado às histórias de Jorge Amado que contam sobre os dilemas dos coronéis do cacau, desta vez Aleilton se deparava com as dificuldades do homem do interior, da luta pelas terras e por melhores condições de vida. “Me encantei”, diz o autor de O Canto de Alvorada e de Nhô Guimarães. A linguagem dos personagens do campo também está presente em várias obras de Aleilton. Apesar da inspiração, ele nega o título de “regionalista”. “Escrevo uma literatura social, com pegada sociológica”, afirma. “Por que o que é escrito em regiões que não são Sul e Sudeste é regionalista se estamos no mesmo país?”. Para o escritor baiano, Torres é uma demonstração de que o sertão pode inspirar uma “literatura de primeira grandeza”. “O Brasil profundo tem voz, tem drama, tem beleza. Isso merece ser contado”. Retrato de onde eu vim O romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, lançado em 1956, intimidava o escritor baiano Breno Fernandes de tal forma, que ele não passava da segunda página. Lia o começo do livro e logo fechava, com medo do que se depararia mais à frente. Esse gesto se repetiu por alguns anos. “Não sabia se estava pronto. Eu tinha medo de não sobreviver àquela obra”, conta Breno, que nasceu em Salvador, mas passou a infância em Riacho de Santana, cidade do interior da Bahia próxima à divisa com Minas Gerais. Só conseguiu atravessar as primeiras páginas no ano passado, depois que uma amiga contou para ele que se sentiu renascida depois de ler Grande Sertão: Veredas. Motivado pelo depoimento, seguiu com a leitura e se deparou com uma realidade familiar. “Eu li as 600 páginas em voz alta, declamando, porque os personagens tinham o linguajar da minha terra”, lembra. Algumas passagens do livro são ambientadas no sertão do São Francisco, no norte de Minas Gerais. “É o retrato de onde eu vim”, afirma Breno, que cresceu com vergonha de ser um menino do interior em meio à capital. O que era considerado um neologismo por estudiosos da literatura, para o escritor baiano era apenas a forma mais natural de se comunicar: “Foi uma experiência de vida atravessar esta obra”. Breno é autor de oito livros, entre eles Mendax, o Ladrão de Histórias e Josephine, Minha Neguinha. Ele lembra que, durante boa parte da carreira, buscou escrever de uma forma que leitores de todas as partes do Brasil conseguissem compreender. “Eu tentava encontrar um tom neutro, sem muitos regionalismos”. Certa feita, um editor recomendou que uma nota de rodapé fosse incluída para explicar o que era um geladinho, o doce congelado em saquinhos que faz sucesso entre crianças. “Uma bobagem!”, diz Breno. Com Guimarães Rosa, ele percebeu que o que era natural para alguns não precisaria de tradução. “Escrevo sobre aquilo que me marcou e quero abrir mão de qualquer paradigma que foi construído durante a minha juventude”. Presente Por trás dos versos sensíveis da poeta e escritora baiana Kátia Borges, há um eco constante vindo das páginas do livro Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira. A obra, uma antologia que reúne décadas de poesia do autor modernista, chegou às mãos de Kátia como um presente de uma professora quando ela tinha apenas nove anos. “É um livro muito caro para mim, o tenho até hoje”, conta a baiana. “Li na infância, e depois ao longo da vida toda. Releio sempre. Bandeira é atemporal”. Para a autora de De Volta à Caixa de Abelhas e Teoria da Felicidade, entre outros, Estrela da Vida Inteira não foi apenas a porta de entrada para a obra do poeta recifense – foi também o início de uma amizade silenciosa e duradoura: “Bandeira se tornou meu amigo imaginário”. A influência do poeta, no entanto, vai além da admiração. Nos versos aparentemente descomplicados do autor, Kátia encontrou a prova de que a poesia pode ser acessível sem perder a profundidade. “Muitos acusam a simplicidade dos versos, mas ele entende muito de poesia”, defende Kátia. O elo entre os dois autores também se dá na temática. Amor, infância e outros assuntos existenciais estão sempre presentes nos textos de ambos. “Bandeira viveu sob o signo da morte”, afirma Kátia. “Nos meus poemas, também reflito sobre o existir. Ele alcança um entendimento raro sobre isso”. Geografia literárias Quando a escritora Luciany Aparecida começou a escrever Mata Doce, livro finalista do Prêmio Jabuti do ano passado, ela tinha em mente que queria ter como cenário a região em que foi criada. Nascida no povoado do Charco, em Irajuba, no Centro-Sul da Bahia, Luciany diz que retratar uma história em uma comunidade rural só é algo possível porque outros escritores que a antecederam ousaram ao propor uma nova geografia literária. É o caso de Um Defeito de Cor, romance da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, lançado em 2006. “Foi o livro que me disse que eu podia ser escritora”, afirma. “Ele altera o significado do que é narrativa, de como se compõe personagens, espaço… O romance brasileiro deve muito a essa escrita”. Luciany destaca o caráter clássico da obra, não por status, mas por seu poder de provocar desejo: “Clássico é o que te inspira a escrever, a desejar mais”. Ao ler a saga de Kehinde, mulher africana que caminha pelas ruas de uma Salvador reimaginada, a baiana redescobriu a cidade que estava enquanto lia o livro. “Isso foi abrindo meus olhos para uma Bahia inédita”. Para Luciany, livros como Um Defeito de Cor validam a existência de Mata Doce. “É uma obra que cria uma sensibilidade que me permite existir como autora”. Ao lado de Itamar Vieira Junior e Jorge Amado, Ana Maria Gonçalves forma, para Luciany, um trio de autores que idealizou a Bahia de forma complexa. Para ela, esse gesto de imaginar – e de escrever – é também um ato de liberdade. Encantado No fim da década de 1940, na pacata cidade de Poções, localizada no sudoeste da Bahia, não havia uma livraria. Ainda criança, o poeta e escritor Ruy Espinheira Filho dava um jeito para ter acesso aos livros que queria. Pedia para que o pai trouxesse de Vitória da Conquista – a maior cidade mais próxima – as edições de obras infantis clássicas que tanto desejava. “Foi assim que eu li Os 12 Trabalhos de Hércules e fiquei encantado”, lembra o baiano. A obra faz parte de uma coleção de livros do autor paulista que foi sendo completada com o tempo. A cada viagem do pai, um novo livro chegava às mãos de Ruy. Para ele, a importância de Monteiro Lobato para a literatura brasileira é fundamental, algo que deve ser passado de pais para filhos. “Eu li toda a minha coleção e dei para meus filhos de presente quando eles eram pequenos”, conta. “Agora, que eles já são grandes, às vezes me pego lendo tudo novamente”. Ruy é autor mais de 40 obras, entre elas, um livro infantil chamado A Guerra do Gato e uma novela juvenil inspirada na história do Rei Arthur.
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