Estados Unidos pode ter déficit porque (ainda) tem o dólar

Por Breno Roos | Professor do Departamento de Economia e do Programa de pós-graduação em Economia da UFRN

No centro da discussão sobre o tarifaço do presidente Donald Trump está o déficit comercial dos Estados Unidos com o resto do mundo. O saldo negativo significa que aquele país importa mais mercadorias do que exporta. Equivale dizer que o consumo é maior do que se produz internamente, algo que pode parecer temerário, pois esta tendência tem persistido ao longo de décadas. As tarifas seriam para revertê-la.

A questão é que o déficit em si não é um problema simplesmente porque o mundo financia os Estados Unidos, seu governo e seus consumidores. A professora Maria da Conceição Tavares notou, ainda na década de 1980, que este é um dos pilares do poder americano. A contrapartida do déficit é uma ampla acumulação de ativos denominados em dólar na economia mundial. Analistas de mercado diariamente repetem que o “porto seguro” do sistema é o dólar e são os títulos públicos do Tesouro norte-americano.

Atualmente, a China, alvo preferencial das tarifas, é o maior credor dos Estados Unidos, com mais de 3,5 trilhões de dólares em reservas cambiais. São esses recursos, a grande maioria acumulada a partir de superávits comerciais (contrapartida dos déficits americanos) que retornam para os Estados Unidos na forma de títulos públicos do Tesouro. Como o país emite a moeda de curso internacional, o “privilégio exorbitante” acusado por Charles de Gaulle, pode financiar seus déficits externos indefinidamente, pois os agentes econômicos confiam no dólar. Vida que segue.

Mas Trump tem causado muita confusão e incerteza. Foi amplamente noticiado que os cálculos das chamadas tarifas recíprocas não fazem qualquer sentido econômico. O presidente parece apostar no caos para posteriormente barganhar seus interesses. Quais, exatamente?

A retórica trumpista é “fazer a América grande de novo” prometendo recuperar os empregos industriais perdidos, sobretudo para competidores asiáticos. Ora, mas seria mesmo desejável trazer esses empregos de volta? As próprias empresas americanas optaram por migrar sua produção para países onde os custos salariais são muito mais baixos. Foi justamente a reorganização das cadeias globais de valor, iniciada com a globalização neoliberal dos anos 1980, sob liderança dos EUA, que baixou o preço relativo dos bens industriais consumidos mundo afora. 

A prosperidade americana, grosseiramente avaliada pelo nível do seu consumo de bens manufaturados, vem exatamente do mecanismo descrito acima. Produzir fora, mais barato, para consumir mais. Grandes empresas americanas seguiram essa lógica: Apple (China), montadoras de automóvel (México), indústria têxtil (sudeste asiático) e assim por diante. 

Especula-se que o governo Trump estaria interessado em um realinhamento geral das taxas de câmbio, desvalorizando o dólar frente às demais moedas para forçar o barateamento relativo dos produtos americanos e o encarecimento dos estrangeiros. O tarifaço seria apenas a “abertura das negociações”. Ainda assim, é discutível se tal estratégia contribuiria para a reindustrialização dos EUA, sem contar com o risco de enfraquecimento do próprio dólar como reserva de valor e unidade de conta do sistema.

No momento, o dólar (ainda) não parece suscetível a perder sua hegemonia diante das iniciativas de contê-lo (BRICS, por exemplo). Sua centralidade também é amparada pelo poder militar dos EUA. Portanto, o mecanismo monetário que beneficia desproporcionalmente a economia americana permanece, garantindo ampla capacidade de financiamento para induzir uma modernização tecnológica e produtiva. Neste aspecto, o plano Biden fazia muito mais sentido do que a estratégia (até então) errática de Trump – mas não o fez para os eleitores norte-americanos.

A guerra comercial nada irá resolver, apenas desorganizar os mercados para que supostamente sejam reorganizados segundo uma lógica pró-EUA. Resta evidente a preocupação dos Estados Unidos frente a uma ameaça real ao seu poderio econômico e tecnológico: a China. Com capacidades industriais restringidas no Ocidente, e expandidas no Oriente, no longo prazo, ou antes, essa ameaça alcançaria uma dimensão militar, com novas repercussões geopolíticas. O fato é que, no curto prazo, Trump vai entregar inflação, desemprego e descontentamento generalizado.

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