Tecnopopulismo é a junção entre tecnologia e o populismo. Historicamente, entre os anos 1930/1960, especialmente no Brasil, o populismo esteve associado à mistificação, manipulação política, satisfação de algumas demandas dos trabalhadores e demagogia (além do uso da repressão estatal quando necessário), como mostram, entre outros, Octávio Ianni e Francisco Weffort, respectivamente nos livros O colapso do populismo no Brasil (1968) e O populismo na política brasileira (1978). Depois foram publicados muitos artigos, ensaios e livros sobre o tema, como a coletânea organizada por Jorge Ferreira, O populismo e sua história: debate e crítica (Civilização Brasileira, 2001) no qual o tema é discutido em diversas perspectivas.
Em relação ao termo tecnopopulismo, um dos estudos pioneiros é o artigo “Political parties and the challenge to democracy from steam-engines to tecno-populism” (Os partidos políticos e o desafio para a democracia: da máquina a vapor ao tecnopopulismo) de Arthur Lipow e Patrick Seyd, publicado na revista New Political Science 17, n.2, 1995.
Os autores analisam o crescimento, nos anos 1990, de partidos considerados ‘antissistema’ e populistas num contexto de expansão e desenvolvimento tecnológico. Eles abordem os impactos da tecnologia, especialmente da internet, no sistema político, nos partidos e, de forma mais ampla, nas democracias representativas. Para eles, era inevitável que a revolução tecnológica, particularmente na comunicação, simbolizada pela internet, tivesse efeitos significativos nas instituições das democracias representativas e nos processos eleitorais.
Nesse sentido, o tecnopopulismo surge em outro contexto, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico. Trata-se de um novo sistema dominado por algoritmos e tecnologias digitais, aliado a uma rejeição generalizada à classe política tradicional expressando uma crise da representação política.
Nesse contexto, os líderes populistas são eleitos fazendo uso das novas tecnologias, expansão da internet, valendo-se de máquinas de desinformação, mentiras, bots e trolls.
São muitos exemplos desde então, sendo os mais recentes as vitórias (e os governos) de Donald Trump nos Estados Unidos e Javier Milei na Argentina. Ambos não apenas fizeram, mas continuam a fazer, usando as plataformas digitais, especialmente nas redes sociais para difusão de fake news e teorias da conspiração, além de mentiras. O propósito é o de mobilizar seguidores e não possibilitar qualquer forma de participação democrática.
Isso coloca novos desafios para a democracia. É possível afirmar que o tecnopopulismo, é, hoje parte da lógica subjacente às democracias? O fato me existe uma articulação entre tecnologia e populismo em um cenário em que as instituições tradicionais de representação, como os partidos políticos, são questionados.
No artigo Populism and technocracy: opposites or complements? (Populismo e tecnocracia: opostos ou complementos), Christopher Bickerton e Carlos Invernizzi Acetti analisam os efeitos da tecnologia (e da tecnocracia) em governos populistas. Eles afirmam: “Embora populismo e tecnocracia apareçam cada vez mais como os dois polos organizadores da política nas democracias ocidentais contemporâneas, a natureza exata de sua relação não tem recebido atenção sistemática” (Critical Review of International Social and Political Philosophy, vol. 20, n.2, 2017).
Os autores argumentam que, embora populismo e tecnologia possam parecer contraditórios, há uma complementaridade no tecnopopulismo, que expressa uma crítica a uma forma política específica a chamada democracia partidária, que é um regime baseado na mediação de conflitos políticos por meio de partidos políticos e em uma legitimidade processual, onde resultados são válidos se derivados de procedimentos democráticos, como deliberação parlamentar e competição eleitoral.
No populismo, os partidos perdem seu papel como instituições de representação, sendo substituídos pelas redes sociais. Assim, o populismo se articula com tecnologia e, em casos como os da Argentina e dos Estados Unidos, por exemplo, com a autocracia.
Em outro artigo, Techno-populism as a new party family: the case of Five Star Movement and Podemos (Tecnopopulismo como uma nova família partidária: o caso do Movimento Cinco Estrelas e Podemos) publicado na revista Contemporary Italian Politcs, vol. 10, n. 2, 2018, os autores defendem o termo tecnopopulismo para descrever uma nova família partidária. Analisando os dois citados, destacam que esses movimentos representam transformações importantes nos sistemas políticos e partidários.
Os autores revisam três categorias da literatura: partidos antissistema, anti-establishment e populistas. A conclusão é a de que nenhuma delas capta a originalidade desses movimentos, que combinam concepções populistas e tecnocráticas. Propõem, então, o termo tecnopopulismo como um tipo ideal para analisar tecnologia, populismo e partidos políticos.
No livro Tecnopopulism (2024) Christopher J. Bickerton e Carlo Accetti analisam as consequências do tecnopopulismo para as democracias contemporâneas, com o entendimento de que representa a fusão entre populismo e não apenas tecnologia, mas tecnocracia. Eles examinam casos como a Liga do Norte (extrema-direita) e o Movimento Cinco Estrelas, na Itália. Este, fundado pelo comediante Beppe Grillo em 2009, como o nome indica, não se trata de um partido, mas um Movimento (de direita).
As cinco estrelas significam o que eles chamam de prioridades do Movimento: água pública, ambientalismo, transportes sustentáveis, direito à Internet e desenvolvimento sustentável. O problema é como pretendem viabilizar essas prioridades, que não passam de propaganda.
Uma matéria publicada em julho de 2021 no jornal El País, por Daniel Verdu, chama Beppe Grillo, de “o palhaço que triunfou com o experimento político mais estranho da Europa”.
Mas destaca ser inegável que ele se tornou uma das pessoas mais influentes da última década na política italiana. O movimento criado por ele, entre outros aspectos, se tornou uma força política e passou a se compor com governos. E uma de suas bandeiras é o que chamam de democracia direta via internet, mas isso é mais uma estratégia propagandista e apelo populista, do que um programa consistente e viável. Afinal, como pretendem fazer isso? Creio que seu sucesso eleitoral ilustra claramente – e não apenas na Itália, mas em outros países em que existem lideranças populistas como Beppe Grillo – uma lacuna entre cidadãos e instituições representativas.
No livro Os engenheiros do caos (Editora Vestígio, 2019), o cientista político italiano Giuliano Da Empoli ao analisar o impulsionamento da onda populista em vários países (Itália, Estados Unidos, Brasil, Reino Unido, Hungria e Turquia) chama de ‘engenheiros do caos’ os tecnólogos, estrategistas, e especialistas em big data que usam algoritmos para direcionar conteúdos e manipular redes sociais, facilitando a chegada ao poder de lideranças de extrema direita. Entre esses “engenheiros” destacam-se, hoje, Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), e Steve Bannon, nos Estados Unidos. Estes, são mais conhecidos, mas existem muitos outros, atuando nos bastidores das plataformas digitais, contribuindo para a consolidação do tecnopopulismo.
Um aspecto importante em relação aos algoritmos, parte essencial do tecnopopulismo, é que eles são programados (por esses “engenheiros”) como afirma Da Empoli, para oferecer aos usuários conteúdos que os levem a apoiar certos candidatos “não importa que posição, razoável ou absurda” desde explore, suas aspirações e principalmente seus medos. Ele argumenta que os algoritmos, assim como as fake news e teorias da conspiração, são usados para disseminar, além do medo, intolerância, ódio etc., e também para influenciar eleições, transformando campanhas eleitorais em “verdadeiras guerras entre softwares”.
Quando chegam ao poder, esses governantes conectam-se com seus seguidores pelas redes sociais, ignorando partidos tradicionais, reduzidos a meros instrumentos para viabilizar candidaturas. E têm como característica comum o desprezo pela ciência, pelos acadêmicos e pelo saber em geral.
Outro aspecto importante é que nas eleições – momento crucial das democracias representativas – dados dos eleitores e técnicas de marketing são usados para direcionar as campanhas, especialmente nas redes sociais. Empresas especializadas vendem informações como idade, gênero e renda, inundando as plataformas com versões distorcidas da realidade para beneficiar seus clientes. Isso torna a disputa eleitoral desigual e manipulada, colocando a democracia em risco. Exemplos recentes incluem as vitórias de Donald Trump (2016 e 2024), Jair Bolsonaro (2018) e Javier Milei (2023), impulsionados por algoritmos (direcionados) para difusão de fake news, ataques às instituições democráticas, desqualificação de adversários etc.
Nos Estados Unidos, como detalha Britanny Kaiser no livro “Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e puseram a democracia em xeque” (Rio de Janeiro, Haper Collins, 2020), a empresa forneceu dados de milhões de pessoas em benefício da campanha de Donald Trump em 2016. Mensagens eram direcionadas não apenas para eleitores potenciais, mas também para desacreditar Hillary Clinton com todo tipo de mentiras. E, teve êxito, vencendo a eleição.
Mas, é importante destacar que Trump continuou a espalhar desinformação mesmo como presidente. Segundo o jornal Washington Post, ele fez mais de 20 mil declarações falsas entre 2017 e agosto de 2020, (quando a matéria foi publicada), incluindo mais de mil declarações falsas ou simples mentiras sobre a pandemia da covid-19.
Mas nem sempre campanhas mentirosas tem êxito.Em 2020, Trump perdeu a eleição para Joe Biden e em 2022, Bolsonaro perdeu para Lula. Mas ao perderem, acusaram fraudes inexistentes nas urnas (ou seja, sem apresentarem provas), no entanto, ajudou seus seguidores a fazerem ataques ao Capitólio (2021) nos Estados Unidos e no Brasil, às sedes do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
Nos Estados Unidos, a campanha de Trump usou principalmente o SMS (2016) e Twitter (2020), no Brasil, foi o WhatsApp em 2018.
Em 2022, a campanha de Lula adotou estratégias para neutralizar fake news, com ações judiciais junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e desmentidos em seu programa eleitoral.
Embora a manipulação não garanta vitórias em todos os casos (como as derrotas de Trump em 2020 e de Bolsonaro em 2022 exemplificam), seu impacto na democracia é inegável.
O uso de mentiras está ligado ao fenômeno da pós-verdade, que também é uma característica do tecnopopulismo, onde fatos são relegados a segundo plano, com a criação de “Bolhas digitais” e desinformação, alimentadas por amadores e especialmente por profissionais de marketing, enquanto o ódio se torna uma estratégia comum, como destacam Wesley S. T. Guerra (O tecnopopulismo e ódio nas redes sociais,2020) e Giselle Beiguelman (Rádio USP, 2020), que denunciam crimes como difamação e racismo nas plataformas digitais. Beiguelman se refere à forma como assédio e ódio na internet, difamação injúrias, homofobia etc., são frequentes nas redes sociais, nas quais o ódio aparece como “estratégias comuns de um tecnopopulismo, que se vale dos recursos on-line e das diretrizes de comunidade das maiores redes sociais e plataformas, como o Twitter, o Facebook, o Instagram e o YouTube”.
Em suma, o tecnopopulismo, aliado ao desenvolvimento tecnológico (e resultado dele), representa uma ameaça à democracia. Seu uso de perfis falsos, robôs e algoritmos permitem a manipulação eleitoral e o ataque às instituições democráticas, colocando em risco os fundamentos da própria democracia representativa.
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