“A espécie humana é uma só e brotou da mesma raiz”, diz médico

Cuidar e compreender outro ser humano como um membro da própria família é um dos caminhos para alcançar uma sociedade mais amorosa e justa. É o que afirma o médico, psicoterapeuta e professor baiano Feizi Milani. Ele vai participar da Cúpula Global pela Justiça, Amor e Paz, que reunirá lideranças atuantes a favor dessas causas em todo o mundo. O evento será realizado em Dubai, nos Emirados Árabes, nos dias 12 e 13 de abril, e Feizi vai participar por videoconferência. Na ocasião, o palestrante tratará sobre o amor como uma ferramenta para tornar o futuro do planeta mais sustentável. “Dormimos todas as noites com a consciência tranquila, mesmo sabendo que têm milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social”, afirma Feizi. “Isso acontece porque pensamos que nós somos nós e eles são os outros”. A chave para a mudança é reconhecer que a humanidade é uma espécie única. “Isso muda tudo”, explica. Nesta entrevista, Feizi ainda fala sobre o desafio que é lidar com a ação de conglomerados de tecnologia que trabalham para tornar indivíduos cada vez mais dependentes dos aparelhos eletrônicos e os obstáculos para criar jovens independentes.Como surgiu o convite para participar da Cúpula Global pela Justiça, Amor e Paz?Esse convite apareceu por duas caminhadas pessoais que são completamente interligadas. Uma é a minha paixão e dedicação ao tema da cultura da paz. Tenho trabalhos publicados e muitos projetos sociais e educacionais voltados para este tema. A outra caminhada é a do meu envolvimento como membro da Fé Bahá’í. É uma religião que tem como um dos principais fundamentos a paz e a unidade da diversidade. A minha mesa na Cúpula vai perguntar se o amor pode inspirar um futuro mais sustentável. Eu pretendo abordar essa questão partindo de vivências pessoais que me mostraram que, em cada problema que analiso, encontro uma causa comum: o desafio de reconhecer a humanidade. Um ponto importante é a diferença entre unicidade e unidade. Unidade é algo necessário, sem dúvidas. É como uma salada de frutas. Você corta vários tipos de frutas, cada uma de um pé diferente, mistura tudo e faz uma refeição deliciosa. Unicidade é diferente. É aquilo que é único, que é um só desde o princípio. A espécie humana é uma só e brotou da mesma raiz. Reconhecer a unicidade dos seres humanos implica em pensar, sentir e falar como uma única família humana. Isso muda tudo. Se eu souber que um membro da minha família passa fome, eu não vou conseguir dormir à noite de tanta preocupação. Vou fazer de tudo até que essa situação seja resolvida. Mas dormimos todas as noites com a consciência tranquila, mesmo sabendo que há milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Isso acontece porque pensamos que nós somos nós e eles são os outros.Quais são os maiores desafios para instaurar o valor da unicidade no contexto mundial atual?A base de tudo é o amor. É ele quem gera a transformação, tanto em nível pessoal quanto coletivo. O amor não é meramente um sentimento. O amor é uma capacidade e, por isso, pode ser desenvolvido infinitamente. Não há um ponto de chegada, um limite. Isso significa que eu posso aprender continuamente a amar cada vez mais, com mais sinceridade e de forma mais ampla, para além do nosso núcleo familiar. Até o momento em que a gente chega ao ponto de amar toda a humanidade e todos os seres, todos os elementos que compõem a Terra. Dito isso, eu acredito que o objetivo mais desafiador de se instaurar é a justiça, porque isso implicaria em mudanças que vão desde o nível individual até o coletivo. A concentração de riqueza, a corrupção, o terrorismo, as guerras, são obstáculos que estão interligados. É preciso entender que, quando falamos de justiça, amor e paz, esses princípios precisam ser aplicados desde a nossa vida interna para que um primeiro passo seja dado, mas não parar aí. É importante entender a urgência dessas questões mais fundamentais, que precisam ser refletidas e discutidas. Na sociedade, há uma ideia de que cada um sabe o que é melhor para si, cada um faz do seu jeito. Mas não é bem assim. Cada um tem a própria verdade em questões pessoais, mas quando a gente fala de princípios universais, é preciso chegar a um consenso. O que é justo dentro de uma família? O que é justo na educação dos filhos? O que é ser justo com quem trabalha para a gente? As pessoas pegam essas palavras que são de reconhecimento universal e distorcem seus conceitos para adaptar ao que elas estão fazendo.A série Adolescência, lançada pela Netflix no mês passado, tem repercutido na mídia principalmente por trazer assuntos como bullying, machismo, e por abordar o mal-estar geracional entre pais e filhos. O senhor já assistiu à série? Quais são os principais impactos das mudanças sociais e culturais na educação dos adolescentes?Ainda não vi Adolescência, mas quero assistir com a família justamente para suscitar essas questões. Mas, independentemente disso, eu percebo esse impacto da tecnologia em todas as gerações, não só entre os jovens. Os idosos, por exemplo. Muitos ficam sozinhos em casa e passam o dia inteiro no celular e de frente para uma televisão. A diferença para um adolescente é que um adulto tem alguma recordação do que era a vida antes das telas, sabe diferenciar. A nova geração já nasce mergulhada no mundo virtual e tem dificuldade para perceber que essa realidade não substitui as relações pessoais. Para mim, o capitalismo é uma expressão do materialismo, que é essa visão do ser humano exclusivamente como matéria. Ao contrário da máquina, os seres vivos têm características e necessidades que precisam ser atendidas. A máquina não precisa de sono, não precisa de uma alimentação saudável, já o humano requer esses cuidados. O ser humano não foi feito para viver em solidão. É preciso cuidar do corpo, da mente, do espírito, da vida social. Quando a gente descuida disso, tudo se desorganiza. Quanto mais tempo na tela, menos tempo temos para as interações sociais, o que vai repercutir em crises de ansiedade, em depressão, pânico, ou seja, uma série de situações que são, na verdade, expressões de um fenômeno coletivo.A tecnologia como está posta é um obstáculo para o estabelecimento da justiça, da paz e do amor?É importante reconhecer que não existe tecnologia neutra. A tecnologia tem embutida em si determinados valores. A questão é: esses princípios são a favor da vida, do bem-estar, do desenvolvimento humano e da paz? Ou são valores voltados simplesmente para saciar impulsos momentâneos e de gratificação instantânea? É preciso ter uma visão bem mais crítica em relação à tecnologia e parar de achar que tudo o que é produzido serve para atender aos nossos interesses de consumidor. Não há nenhuma preocupação com o bem-estar, nem individual, muito menos o coletivo. O interesse é o lucro. Dia desses vi um comercial de casas de aposta que dizia “este é o jogo mais viciante”. Fiquei pasmo com a honestidade. Ao menos isso! São negócios montados para viciar. O menor dos intuitos é o divertimento.Você comenta que a cultura brasileira tende a ser superprotetora e paternalista. Acredita que esse é um comportamento geral do país?Eu uso o termo cultura para evitar a generalização. Porque quando a gente fala de uma cultura, é, justamente, para não afirmar que todas as famílias são desta forma ou daquela. Mas, acredito que, no Brasil, a superproteção é algo visto com naturalidade, como a forma mais correta ou ideal de criar os filhos. Nas famílias de baixa renda, por exemplo, existe uma coisa mais forte da autoridade paterna ou materna, que é um recurso de manter a família unida e a integridade moral dos filhos. Mas, quantas vezes já vimos famílias pobres fazendo festas de aniversário para os filhos que vão muito além de suas possibilidades financeiras? Isso é a manifestação de um paternalismo. É uma expressão de amor? Sim. O paternalismo é uma expressão de amor, mas não é um amor que conduz ao crescimento. É fácil ver crianças indo para a escola junto a um responsável e é o adulto quem está carregando a mochila. Em outros países, é a criança quem carrega a própria mochila com os materiais escolares. Porque aquele é o peso dela, é ela quem deve sustentar. É o peso de carregar as próprias responsabilidades. Claro que essa não é uma regra fixa, mas, enquanto lógica, é importante que cada pessoa carregue seus encargos.
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