Meu Nome é Maria dá voz à atriz silenciada por Bertolucci e Brando

O cineasta italiano Bernardo Bertolucci já era um diretor famoso na década de 1970, mas sua carreira ganhou um novo impulso com o lançamento do tórrido O Último Tango em Paris (1972). O drama reunia o astro norte-americano Marlon Brando, já um ator mundialmente reverenciado, com a jovem e desconhecida atriz francesa Maria Schneider, de apenas 19 anos de idade.As sequências de sexo que os dois protagonizavam eram o grande chamariz do filme, mas também mancharam a carreira e biografia tanto do diretor quanto do ator.Isso porque, em uma das cenas, a jovem personagem é forçada a fazer sexo anal com o seu par, mas a atriz não contava com um detalhe que foi armado por Bertolucci e Brando: o uso de manteiga como lubrificante, que o ator passou de verdade nas partes íntimas da atriz, tudo isso sem o consentimento de Schneider, com o intuito de dar mais “veracidade” à cena.Esse e outros momentos da vida e carreira da atriz estão retratados no filme Meu Nome é Maria, já em cartaz nos cinemas. A cineasta Jessica Palud não foge das polêmicas e decide, inclusive, reencenar a fatídica cena, atenta aos detalhes e aos comportamentos dos envolvidos no set de filmagens. Se por um lado isso acaba reproduzindo, mais uma vez, o momento da violência, o filme também consegue dissecar os pormenores que a envolveram e foram decisivos para o futuro da atriz.Interpretada por Anamaria Vartolomei, Schneider estabelece uma relação de cumplicidade com Bertolucci (vivido por Giuseppe Maggio), sendo esse o seu primeiro papel de destaque, algo que podia abrir muitas portas para sua vindoura carreira. Porém, diante da violência sofrida no set, ela não se calou e evidenciou sua insatisfação e desacordo com o ato a que foi submetida. Chegou a declarar isso publicamente, mas também foi acusada de querer se promover às custas dos impasses do filme, que foi censurado em muitos países por conta de seu conteúdo sexual escandaloso.Brando, por sua vez, na interpretação minimalista de Matt Dillon, surge como o homem mais velho e ator mais experiente que tem certo cuidado ao lidar com a atriz na maior parte das cenas, mas não deixou de articular o lamentável plano que hoje é entendido como estupro, mesmo não tendo havido penetração. Ele também chegou a dizer para ela que aquilo tudo “era apenas um filme”.É nesse jogo de dubiedades e complexidades que o filme trabalha as questões espinhosas envolvendo o sexismo da indústria cinematográfica, o comportamento intransigente e inescrupuloso dos homens e o pouco de cuidado e atenção que eram dados às atrizes de cinema em cenas íntimas.Sonho de atrizMas Meu Nome é Maria não se resume apenas à polêmica cena que marcou a carreira de Schneider. O filme, baseado no livro de memórias escrito pela prima da atriz, Vanessa Schneider, acompanha os conflitos familiares prévios e os traumas e problemas psicológicos que ela enfrentaria posteriormente.Filha de pais afastados, Schneider passou muito tempo sem saber a identidade do seu pai biológico. Já adolescente, descobre que ele é um ator e se encanta pelo universo do cinema. Nasce ali também o sonho de ser atriz, para a surpresa e desgosto de sua mãe. Ela não se conforma que a filha vá buscar reatar laços com o pai, homem que ela detesta por nunca ter lhe ajudado a criar filha.Este ódio ela acaba transferindo para a própria filha e chega a lhe expulsar de casa. As violências, portanto, acompanham a vida de Schneider desde o seio familiar, revelando relações desarmônicas e conflituosas, embora ela busque o caminho da conciliação, antevendo aí uma possibilidade de construir uma carreira.Ao cruzar o caminho de Bertolucci, todo o episódio envolvendo as polêmicas de O Último Tango em Paris transformam profundamente a jovem atriz, que segue na profissão, mas vai estar constantemente associada ao caso. Ela confessou também que se sentiu abandonada pelo diretor e por Brando depois que o filme foi lançado e as controvérsias começaram a aparecer na imprensa, já que eles voltaram para seus respectivos países e ela permaneceu na França, onde o filme foi rodado.Olhar feminista

|  Foto: Divulgação

Palud, apesar de se aprofundar no caso fatídico, respeitando os fatos e versões hoje sabidos, claramente está do lado da atriz, reforçando um gesto de aproximação para entender a dor de quem foi punida seguidamente por uma violência sofrida por ela própria e dificilmente escutada nos anos seguintes.Como atriz, Schneider conseguiu poucos papéis de destaque – com exceção, talvez, de Passageiro: Profissão Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni. Meu Nome é Maria revela também os problemas com uso de drogas e dependência química, além da inconstância emocional que a seguiu e atrapalhou seus relacionamentos posteriores, assim como o comprometimento nos seus trabalhos futuros como atriz.De qualquer forma, a obra encara os descaminhos que se seguiram em sua vida, apesar de reforçar certa segurança que ela adquiriu depois de tanto ser calejada pela indústria e pela mídia – nas filmagens de um dado filme, nos anos 1990, o diretor propõe que ela tire a parte de cima da roupa porque acha que o nu seria ideal para a cena, o que ela se recusa a fazer, por não ter sido algo previamente combinado, sendo prontamente acatada.O filme faz, portanto, aquilo que ninguém fez por Schneider: lhe deu crédito e voz para entender sua versão dos acontecimentos dos bastidores do filme de Bertolucci. Apesar das declarações da atriz ao longo da carreira, somente depois de sua morte, em 2011, o cineasta italiano falou publicamente sobre o caso e admitiu que não combinou os detalhes da cena com a atriz, confirmando a tese de estupro. Ao passar a limpo o caso, com toda sua cota de aversão e gatilhos, Meu Nome é Maria expõe feridas que nunca cicatrizaram, mas que alertam para as violências perpetradas em frente às câmeras.Meu Nome é Maria (Maria) / Dir.: Jessica Palud / Com Anamaria Vartolomei, Yvan Attal, Hugo Becker, Matt Dillon, Giuseppe Maggio, Marie Gillain, Jonathan Couzinié, Mélissa Barbaud / Salas e horários: cinema.atarde.com.br

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