Quem é o potiguar que foi jurado nos desfiles das escolas de samba de São Paulo

Com olhos clínicos e observações técnicas, eles são responsáveis por avaliar cada detalhe durante o desfile de uma escola de samba. Alguns têm fama de carrasco, outros de bonzinhos, mas, a verdade é que para ser jurado de um grande desfile durante o carnaval é preciso passar por um rigoroso processo de seleção.

Geralmente, um jurado é convidado por seu notável conhecimento acadêmico, profissional ou artístico. Foi o caso do potiguar Sávio Araújo, professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que, entre 2017 e 2022, esteve na banca de jurados das escolas de samba de São Paulo.

Saiba Mais – Como um potiguar foi parar na banca de jurados de escolas de samba de SP?

Sávio Araújo – Isso aconteceu em 2017, quando a LIGA SP – Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo – iniciou um processo de renovação da comissão julgadora. A decisão veio após incidentes ocorridos em anos anteriores, como o episódio amplamente divulgado em que uma pessoa invadiu a apuração e rasgou as cédulas com as notas diante das câmeras de TV, além de casos em que jurados esqueceram de atribuir notas a uma escola. Esses acontecimentos prejudicaram a imagem do Carnaval de São Paulo, levando a LIGA SP a promover um processo inovador para a seleção de seus jurados.

Imagem: cedida

Para isso, a entidade contratou uma empresa especializada para a seleção e o treinamento de um novo corpo de jurados. Foram convidadas pessoas de diferentes regiões do país. Com minha experiência como professor de Cenografia no Departamento de Artes da UFRN (DEART/UFRN), já havia sido jurado do Carnaval de Natal por oito anos e, em 2013, atuei como jurado no Centenário do Boi de Parintins, no Amazonas, e, assim, fui convidado a integrar esse novo grupo para o processo de seleção de jurados.

SM – Como ocorre esse processo de escolha do jurado?

SA – O processo de seleção começou com uma prova teórica aplicada online, por meio da qual foram pré-selecionadas 54 pessoas, a maioria docentes de instituições universitárias. A LIGA SP custeou o deslocamento desse grupo para um hotel em São Paulo, onde, durante duas semanas, participamos de um treinamento específico para cada quesito, aprofundando-nos nos aspectos técnicos e teóricos do carnaval.

Os nomes dos jurados foram mantidos em sigilo até o dia da apuração. Então, em 23 de fevereiro de 2017, foram definidos os 36 jurados que integrariam a Comissão Julgadora do Carnaval de São Paulo. Foi nesse dia que soube que havia sido selecionado para atuar como jurado do quesito Alegoria, responsável por avaliar os carros alegóricos das escolas de samba durante o desfile.

SM – De quantas bancas já participou?

SA – Sempre gosto de lembrar que uma das bancas mais emblemáticas das quais participei foi a do Festival Folclórico do Boi de Parintins, AM, em 2013, devido ao privilégio e excepcionalidade desta oportunidade.

No carnaval, em Natal, RN, entre 1992 e 2016, fui oito vezes, jurado do Desfile das Escolas de Samba. Em São Paulo, SP, entre 2017 e 2022, fui seis vezes jurado de Alegoria, exceto em 2020, quando os desfiles foram cancelados, por causa da Pandemia de COVID.

SM – Quantos jurados participam de uma banca?

SA – Cada quesito é avaliado por quatro jurados, totalizando 36 jurados no Carnaval de São Paulo. Um deles é sorteado para atuar como suplente, enquanto os outros três são distribuídos em torres de julgamento ao longo da avenida. Essa disposição permite que possíveis falhas não identificadas por um jurado sejam observadas por outro, em um ponto diferente do desfile.

Em frente a cada torre, há um cronômetro que marca o tempo de desfile da escola. A partir do momento em que a escola entra no campo de percepção do jurado, de acordo com o seu quesito, ele deve registrar na cédula de votação todas as ocorrências passíveis de penalização, detalhando a torre onde se encontra, o minuto em que a falha foi observada e uma descrição técnica precisa do ocorrido.

Comissão julgadora do carnaval de São Paulo de 2019 I Foto: acervo particular

O desfile é filmado de vários ângulos, permitindo que as escolas analisem as avaliações realizadas por cada julgador. Dessa forma, os jurados também estão sujeitos a avaliação. Caso seja constatado algum erro de julgamento, eles são advertidos em uma reunião posterior de avaliação e, em casos mais graves, podem ser afastados da comissão julgadora.

SM -Quantos itens são julgados?

SA – São nove quesitos, divididos em três módulos: Módulo Música (Harmonia, Samba de Enredo e Bateria), Módulo Visual (Enredo, Fantasia e Alegoria) e Módulo Dança (Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Comissão de Frente e Evolução).

SM – Por que há diferenças tão pequenas entre as notas?

SA – Nos desfiles das escolas de samba há um princípio fundamental de valorização do imenso trabalho realizado para o carnaval. Por isso, cada escola entra na avenida com a nota 10,0 e pode perder pontos de acordo com as avaliações dos jurados.

O regulamento da LIGA SP, escrito e aprovado por representantes de todas as agremiações filiadas, estabelece que todas as notas devem ser justificadas. Segundo o Regulamento: “A justificativa deve conter única e exclusivamente o motivo técnico da perda de pontos e deve ser objetiva e direta, sem rodeios ou expressões de conotação de gosto pessoal.”

Dessa forma, os jurados atribuem as notas em uma escala de 8,0 a 10,0, sendo que cada penalização corresponde, geralmente, a uma redução de 0,1 ponto. Por isso, as notas abaixo de 10,0 costumam ser 9,9; 9,8; 9,7 e assim sucessivamente.

SM – O processo de votação é confiável?

SA – Todos os processos dos quais participei ao longo de seis anos no Carnaval de São Paulo foram extremamente confiáveis e rigorosos. Essa ideia de “É marmelada!” é coisa de torcedor.

Desde o momento em que entramos no hotel, onde ficamos isolados durante todo o processo, todos os aparelhos eletrônicos, como celulares, tablets e notebooks, são entregues à Comissão Organizadora da LIGA SP, para evitar qualquer contato externo com os jurados. Cada jurado assina um termo de confidencialidade, garantindo o sigilo de sua identidade e impedindo que revele as notas, faça comentários ou emita opiniões sobre qualquer agremiação até a divulgação oficial dos resultados, principalmente, por meio da imprensa.

No sambódromo, com alguns membros da comissão julgadora de 2021

Ao final de cada noite de desfile, as cédulas de votação, contendo as notas e justificativas de cada jurado são recolhidas pela Comissão Organizadora da LIGA SP e encaminhadas para um quartel da Polícia Militar de São Paulo, onde ficam sob guarda até serem transportadas para o local da apuração.

Todos os anos em que atuei como jurado, fiz questão de acompanhar a apuração e conferir se as notas lidas eram exatamente as que eu havia atribuído. Nunca houve qualquer alteração, e nunca tive conhecimento de nenhum jurado que tenha relatado qualquer distorção no processo.

SM – Como avalia os desfiles do carnaval de Natal? Já participou como jurado de algum?

SA – Os desfiles de carnaval, para além de sua beleza, festa e alegria, desempenham uma função social fundamental. Como manifestação cultural, articulam cadeias produtivas da economia criativa, mobilizam pessoas em diferentes saberes, fazeres e habilidades, fortalecem comunidades e reforçam laços de pertencimento e identidade em torno de cada agremiação e de seus territórios de origem.

Dessa forma, os desfiles das Escolas de Samba de Natal não devem ser comparados aos de outras cidades do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas sim valorizados pelo que conseguem produzir dentro dos contextos e condições específicas em que cada escola desenvolve seu trabalho.

Além disso, há um componente de compromisso e vontade política que deve ser cobrado dos órgãos públicos de gestão cultural, responsáveis por priorizar as manifestações culturais oriundas de nossas comunidades, especialmente aquelas em situação de maior vulnerabilidade econômica. Assim, a gestão pública da cultura tem a obrigação de estabelecer parcerias estratégicas para garantir a infraestrutura, a divulgação, a viabilidade econômica e o acesso democrático à produção, apresentação e apreciação dos desfiles das Escolas de Samba em Natal, RN.

SM – Há potencial para crescermos? O que falta para isso?

SA – Sim! Há um enorme potencial. Os desfiles das Escolas de Samba têm um valor cultural e educativo imenso! Basta observar o quanto aprendemos sobre nossa história e memória por meio dos enredos apresentados todos os anos na avenida. No entanto, como mencionei, a melhoria desse cenário depende de vontade política, capacidade de gestão e compromisso com as manifestações culturais populares, que devem ser priorizadas pela administração pública.

As manifestações culturais promovidas por empresas privadas, em geral, atendem a interesses econômicos específicos, muitas vezes mais alinhados às tendências e modismos da indústria cultural do que às tradições culturais.

Os desfiles das Escolas de Samba em Natal, RN, sempre estiveram fortemente ligados a bairros populares como Rocas, Mãe Luíza, Quintas, Alecrim, entre outros. Há inúmeras parcerias possíveis que poderiam ser estabelecidas para capacitar melhor nossos carnavalescos e demais artistas do carnaval – como sambistas, figurinistas, aderecistas, entre outros –, proporcionando-lhes melhores condições de trabalho, além de acesso a equipamentos, materiais e técnicas que potencializem sua imensa criatividade e capacidade de realização. Se já fazem tanto com tão pouco, imagine o que poderiam alcançar com mais apoio e incentivo!

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