A guerra santa cultural no banquete das identidades

Confesso que não assisti a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris. Na sexta a tarde estava no trânsito, envolvido com demandas típicas de um pai de família da classe média potiguar, como, levar e pegar as crianças no colégio e ir com Uriel (meu filho mais velho) fazer a matrícula dele da auto escola.

Quando cheguei a noite em casa, vendo as cenas pela CazéTV no Youtube, foquei mais na emocionante apresentação de Céline Dion cantando Édith Piaf na torre Eifel ou mesmo na ousadia conceitual dos organizadores da cerimônia em usar a própria cidade como cenário do espetáculo.  Só no Sábado, acompanhando as repercussões da festa de abertura pelo Xwitter ( a rede social que Elon Musk tenta destruir sem sucesso) é que soube da treta envolvendo uma suposta blasfémia (ou sacrilégio) contra a religião cristã.

Aparentemente, a partir de militantes de extrema direita, de religiosos de diversas matizes, autoridades eclesiásticas da Santa Madre Igreja e até de perfis de esquerda que combatem uma tal “cultura Woke”; surgia uma torrente de críticas e indignação global em função de uma suposta “paródia” da Santa Ceia, uma das obras mais conhecidas do pintor florentino Leonardo Da Vinci.

Vendo a tal cena da paródia pelas redes sociais lembrei na hora das obras de Frederico Fellini (outro italiano genial) que meu pai costumava a assistir em VHS com muito apreço nos meus tempos de criança. Fora a tal mesa (ícone geométrico fundamental da obra de Da Vinci) não encontrei muitas referências diretas à passagem bíblica em que Jesus anuncia as bases do ritual de teofagia que está no centro da tradição católica da qual faço parte. A presença de uma figura azul transitando na frente da mesa e de uma mulher com uma espécie de coroa no centro da cena me causou espécie (como dizia o ex-ministro Joaquim Barbosa).

Apenas no Domingo, quando a peleja cultural nas redes sociais já havia escalado mais rápido do que a terceira guerra do Líbano (que já faz uns três meses é anunciada como iminente em perfis de geopolítica que sigo); é que um outro dado surgiu para dar sentido a minha estranheza inicial.

Zapeando pelo Youtube canais da TV Francesa, assisti trechos de uma entrevista com Thomas Jolly, diretor artístico do espetáculo de abertura, na qual o diretor francês afirmava categoricamente que a tal cena não fazia referência ao quadro de Da Vinci, mas sim a uma obra de 1635 de um obscuro pintor holandês chamado Jan Harmenrz van Bijlert (1597 – 1691). O quadro, intitulado “A festa dos deuses”, mostra uma passagem da mitologia grega em que Dionísio aparece no banquete em que Apolo é coroado.   Para mim, a explicação de Jolly fazia todo o sentido diante dos elementos iconográficos da cena de abertura dos jogos e da referência à cultura clássica (algo meio óbvio em uma olimpíada, não é?). 

Quando eu achava que a treta já era passado e que já poderíamos passar para as análises virtuais da eleição na Venezuela, o assunto (ao menos no Brasil) foi requentado por um suposto “pedido de desculpas do COI” em que o comitê olímpico teria “admitido que a cena fazia referência a Santa Ceia”. Como a tal declaração do Comitê não aparecia na íntegra nas mensagens que me chegavam pelos grupos de zap e as falas dos membros do COI apareciam sempre editadas, desconsiderei esse dado como mais uma das estratégias caça cliques de requentar polêmicas para obter engajamento nas redes.

O fato da discussão ter migrado para um debate semiótico acerca de qual quadro mais se adequa a cena exibida na abertura das Olimpíadas me pareceu interessante do ponto de vista de uma hermenêutica da arte, mas completamente inútil. Afinal, esse deslocamento do debate (da blasfémia para a semiótica) escondia um ponto central que precisava ser posto às claras: afinal, por que a cena (supondo que seja mesmo alusiva a obra de Da Vinci) é “ofensiva” aos valores e a sensibilidade religiosa dos cristãos? O que há na parodia teatral transmitida ao vivo para bilhões de seres humanos na terra, que atenta contra a honra e a dignidade de uma religião que pensou a possibilidade de um Deus eterno ter encarnado (tornado carne) na figura de um ser humano finito e imperfeito? Se o Deus cristão se tornou gente na figura de Jesus por que a representação humana desse próprio Deus como uma mulher acima do peso seria ao lado de pessoas trans seria ofensivo? Não há, na tradição cristã, uma noção de que o divino pode se humanizar na figura de cristo e por isso o humano é também divino? Aquelas pessoas não representam, também, uma parte significativa de nossa própria humanidade?

A resposta a essa questão me parece bastante óbvia. Na verdade não importa se a cena faz referência a tradição icnográfica cristã, pagã, assíria, chinesa ou babilônica. O que incomodou profundamente o gosto médio dos conservadores mundo  a fora, foi o fato de que a cena mostra pessoas que não se encaixam no imaginário sexual padrão, considerado “normal” ou “saudável”.

Me parece que há  aqui duas dimensões em jogo.

Uma delas é a da visibilidade dos desejos e das pulsões inconscientes que, ao serem expostas em uma tela, parece que desnudam nossas fantasias sexuais ocultas. Muita gente que se incomoda com pessoas da comunidade LGBTQIA+, padece de um desconcertante desconforto erótico diante da imagem de sexualidade ambígua que se tornou uma das marcas dessa comunidade, dai o incômodo e a indignação.

A outra dimensão, por sua vez, tem a ver com a questão da identidade.

Nas dinâmicas de desenvolvimento da consciência mapeadas por Hegel na Fenomenologia do Espírito, o reconhecimento do outro aparece em um primeiro momento como uma luta de vida ou morte. O sentimento que temos diante da alteridade é de que a presença do outro, em sua diferença radical, implica a supressão do nosso próprio Eu. Se o outro, aquele que não é igual a mim, está posto diante de mim, ele surge como uma negação de mim mesmo. Dai as dinâmicas de reconhecimento podem transitar para dinâmicas de identidade e ao mesmo tempo, inclusive, validar as dinâmicas de extermínio e violência.

A presença do outro que aparece pra mim como uma ameaça fortalece assim a necessidade de afirmar minha própria identidade. Esse parece ser a grande questão psicopolítica da nossa modernidade. Boa parte do debate filosófico tomado a após Hegel gira em torno de que quais as coordenadas em que vamos definir aquilo que nos compõe e separar o que nos torna iguais daquilo que nos diferencia.

Essas coordenadas podem situar-se na questão da classe social (como defende uma esquerda marxista clássica), na disputa cultural (como a da direita neo fascista), na peleja teológica (tipo a dos fundamentalistas religiosos), na afirmação da diversidade individual (como da nova esquerda liberal) ou em um recorte que envolve gênero e raça (como tratam os chamados “identitários”).

Hoje, nesse tempo de cancelamentos e julgamentos sumários em velocidade digital, a definição das coordenadas de nossa identidade, que aparece para muitos como uma luta radical de vida ou morte, é um foco central, que orienta o debate público no ocidente.

No fim das contas não sei se os organizadores da abertura desses jogos Olímpicos calcularam que a cena dos deuses olímpicos, transformada em um banquete de nossas identidades plurais e divergentes iria gerar toda essa celeuma religiosa.

O fato é que a tal cena cumpriu uma função política muito importante: deixou à mostra não apenas a absoluta ignorância da extrema direita global no quesito “história da arte ocidental”, mas também expôs a fragilidade da fé de muita gente, capaz de se sentir ofendida, como se tivessem a própria identidade sexual ameaçada, diante da imagem de outros seres humanos, vivendo suas próprias identidades de gênero.  Mal sabem essas pessoas, como se poderia dizer seguindo o obscuro dialeto de Hegel, que, na terra pátria da verdade, é justamente na fluidez das diferenças e na dissolução das identidades que a humanidade se completa e se torna aquilo que ela é.  

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