Viciado em cigarro eletrônico: “Evitem usar. É muito difícil parar”

Estudante de Medicina de 21 anos usou vape pela primeira vez há 5 anos | Foto: Acervo pessoal

Há 5 anos, um jovem que hoje é estudante de Medicina e tem 21 anos, usou vape pela primeira vez. Com o passar do tempo, vieram as complicações, como falta de ar, dificuldade de subir escada e queda no rendimento.Em meados do ano passado, ele tomou a decisão de tentar parar de usar, só que agora enfrenta outra realidade: a abstinência. Apesar de ser algo desafiador, como descreveu para a reportagem, ele assegurou que a decisão de parar totalmente está mantida. Ele está há cinco dias sem usar. A Tribuna – Quando começou a usar cigarro eletrônico?Universitário – Sempre fumei cigarro de palha. Comecei muito cedo, entre 15 e 16 anos. Só que o cheiro me incomodava. Na época, eu tinha um amigo que usava vape, mas era aquele que precisava recarregar. Hoje a galera opta mais pelos vapes descartáveis, que são jogados fora quando a essência acaba.Usava onde?O meu amigo era uma das poucas pessoas que tinha, eu experimentei e achei bom. Não ficou cheiro e eu fui acostumando. Usava em barzinhos e festas. Depois, eu comprei o primeiro e isso passou a fazer parte da rotina. Eu usava muito mais que cigarro de palha. Fumava deitado na cama, assistindo televisão e dirigindo.Tem noção do máximo que já usou por dia?É difícil dizer porque cada vape vem com uma quantidade de puffs, quantidade de puxadas que você dá. Existe de mil até 30 mil, entendeu? Mas geralmente um de 5 mil puxadas durava cinco dias comigo. Eram mil puxadas por dia.Ainda é assim?Eu tomei uma atitude em meados do ano passado. Percebi que estava fazendo mal e tentei parar várias vezes. Realmente é algo que vicia muito, é mais concentrado.Hoje a gente vive no mundo onde a maioria das pessoas tem ansiedade e o vape é meio que uma válvula de escape. A gente puxa involuntariamente. Teve quais complicações? Eu sentia falta de ar, meu rendimento estava caindo, estava difícil subir quatro lances de escada e me sentia fadigado. São cinco anos usando e uso contínuo na maior parte do tempo.Aí eu tentei parar várias vezes no ano passado, mas não consegui e chegou o verão. De férias, eu falei que não iria parar agora, mas involuntariamente, talvez por eu ser da área da medicina, fui me policiando e decidi não comprar mais. Além de viciante, é um produto que não é barato. Em média, um desses que dura cinco dias ou uma semana, custa R$ 120. Parou de comprar?Sim, desde dezembro, mas não deixei de usar totalmente. Hoje em dia eu uso mais vapes dos meus amigos em alguns momentos, como churrasco ou festa. Dá abstinência?Bastante. Eu tenho muitas crises de abstinência. Na verdade, a abstinência te deixa mais ansioso do que era antes de começar a fumar, te dá aquela sensação de estresse. Às vezes, eu tenho picos de estresse que, com certeza, são provocados pela abstinência.Como faz para driblar a vontade de usar?Tento ocupar a maior parte do tempo, sempre fazendo alguma coisa. O momento em que mais sinto falta é durante as minhas viagens. Eu viajo de carro dirigindo e sempre foi uma comodidade, eu fumava muito. Agora, no carro, eu tento colocar uma música, abaixo o vidro, chupo uma bala, masco um chiclete e vou levando.Quando foi a última vez que usou?Há cinco dias. Se considera viciado?Hoje não mais. Como está atualmente? Ainda sente cansaço?Não. Quando você para, em uma semana, já sente uma diferença muito grande. Qual recado deixa aos jovens que não usaram vape ainda?A dica para quem não conhece o produto e sabe que é uma coisa ruim é que não tenha o primeiro contato. Evitem usar. É muito difícil parar. Procure fazer outra coisa que passe o tempo, não experimente algo ruim. Maioria não consegue abandonar o vício, diz estudoPesquisa recente do Instituto do Coração (Incor) revela que as concentrações de nicotina no organismo de pessoas que usavam cigarro eletrônico há apenas um ano chegaram a ser até seis vezes superiores se comparadas aquelas que fumaram 20 cigarros por dia, durante cerca de 25 anos. O estudo também revelou que a maioria dos usuários tentava abandonar o dispositivo, sem sucesso, evidenciando a dependência e intensificando os impactos emocionais.A pesquisa mostrou ainda que a média de idade dos usuários de cigarro eletrônico foi de 27 anos, sendo 52% na faixa etária de 18 a 25 anos, com a maioria dos usuários sendo brancos, de classe média alta e com alta escolaridade.Aproximadamente 60% dos entrevistados eram usuários iniciantes, enquanto 40% eram ex-fumantes de cigarro tradicional, sendo que metade deles havia deixado de fumar há algum tempo e a outra metade trocou o cigarro convencional pelo vape.Para os especialistas, isso evidencia que os cigarros eletrônicos são uma porta de entrada para o tabagismo.Esse alto nível está associado à forma de entrega de nicotina — a intensidade de oferta de nicotina dos cigarros eletrônicos é maior que a dos tradicionais — e também à frequência de uso. Enquanto uma pessoa que fuma 20 cigarros por dia dá 200 tragadas, um usuário de cigarro eletrônico dá, em média, 773 tragadas por dia.O estudo mostrou também que mais de 60% dos usuários de vape já desejaram parar de usar por conta própria. Entre aqueles com alta dependência, essa taxa sobe para 80%. Entretanto, não houve sucesso na tentativa.No mundo, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) calculam que mais de 7 milhões de pessoas morrem todos os anos por doenças diretamente ligadas ao tabagismo, como o câncer pulmonar, e 1,2 milhão são vítimas passivas da dependência.Os cigarros eletrônicos são proibidos no Brasil, mas 74% dos entrevistados afirmam usar a versão comprada em páginas da internet.Saiba maisCuriosidadeNo BrasilDesde 2009, todos os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs), categoria que engloba os cigarros eletrônicos, os vapes, os pods e outros aparelhos semelhantes, têm a venda e a distribuição proibida no Brasil.Em abril do ano passado, após uma longa reavaliação sobre o tema, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu manter o veto aos dispositivos. Reino UnidoNa contramão do Brasil, o Reino Unido aposta em cigarro eletrônico para reduzir o tabagismo. O país adotou o uso de Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs ) como estratégia de saúde pública para diminuir o número de fumantes de cigarros convencionais. Em 2023, o governo anunciou o programa Swap to Stop (troque para parar), em que pessoas que fumam cigarro podem receber, de graça, kits de vape em postos de saúde.A política britânica tem dois objetivos: idealmente, o vape funcionaria como método de transição para aqueles que desejam parar totalmente de fumar. No caso de quem não quer — ou não consegue — parar de fumar, o cigarro eletrônico serviria como método de redução de danos.Para o NHS (Serviço Nacional de Saúde, na sigla em inglês), embora não haja dados sobre os efeitos a longo prazo do uso de cigarros eletrônicos, é possível desejar que os dispositivos sejam menos específicos do que uma alternativa convencional.Lobby das empresasAs empresas no Brasil fazem forte lobby para tentar reverter a proibição em vigor desde 2009.A indústria tenta argumentar pela regulamentação tanto no Executivo —em janeiro, após repercussão negativa, diretores da Anvisa cancelaram viagem que fariam à sede da BAT (British American Tobacco), no Reino Unido, a convite da empresa— quanto no Legislativo. Fonte: Especialistas citados na reportagem, Incor, Anvisa e pesquisa A Tribuna.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.