A descoberta

Ela era miúda demais para entender tudo, mas sua curiosidade era gigante e seus olhos buliçosos pareciam captar mais do mundo do que deveriam. Com as primeiras palavras surgiram as primeiras perguntas (Puquê?) e uma tagarelice sem fim de histórias emendadas.

De onde ela as tirava? De tudo. De todos. Do mundo ao seu redor. De seu mundo imenso dentro. De um mundo que ela descobria com fome voraz.

Chamava-se Clara, como uma das personagens de A casa dos espíritos de Allende. Recebera seu nome por conta de outra mulher, também uma escritora, Clarice. Por sua vez, sua mãe, Alba, recebera seu nome por conta do livro da escritora chilena. Só não havia uma Blanca naquela casa que era mais de gente que de espíritos. Casa de gente que não parava de trabalhar.

A mãe, costureira de ofício e o pai um sapateiro daqueles que não se encontram mais por aí. A casa era uma oficina e a menina Clara transitava entre sapatos, saltos, solas, tecidos, linhas, fiapos e retalhos… fazia seus próprios brinquedos. Só eles eram capazes de acompanhar as histórias emendadas que criava.

Emendava histórias como sua mãe emendava roupas e seu pai, sapatos. Outra coisa que não faltava naquela casa eram jornais. Esses, o pai Olavo fazia questão de os receber nas primeiras horas do dia. Lia-os ainda enquanto a pequena dormia. Lia-os sorvendo o mundo das notícias em preto-e-branco e transmitindo-as com alguma cor, quando dava, a sua esposa, durante o café fresco e o pão na chapa com manteiga que compartilhavam diariamente.

No fogão, o leite fervia para quando a pequena Clara acordasse e iniciasse os seus puquês? pela casa e desembestasse a falar emendado tudo em suas histórias, inclusive o que sonhara.

Clara, um dia, acordou mais cedo que estava acostumada e viu uma cena que mudou toda a rotina daquela casa. Clara viu seu pai lendo. Clara ouviu seu pai traduzir para a mãe as notícias que estavam impressas no papel. Quieta, no canto da porta, silenciosa como uma sombra, clara sorveu aquele instante.

Minha filha, o que faz de pé aí tão cedo? – Indagou a mãe percebendo aquele pingo de gente encostada no vão da porta da cozinha. Vamos para a cama! Mamãe te bota para dormir novamente.

Clara, num salto, correu para perto do pai. Essa não vai dormir mais de jeito nenhum, Alba. Vem pro colo do pai, vem! – Chamou Olavo cheio de afetos pousando o jornal sobre a mesa e erguendo a pequena em seu colo.

Puquê? – Perguntou Clara puxando o jornal imediatamente para si. Puquê, pai? – Na verdade ela queria saber como o pai conseguia aquilo: ler (coisa que ela não entendia ainda)… Mas para todas as perguntas só havia uma: puquê?
O pai atento, entendeu o que a filha queria. Papai estava lendo. – Respondeu o pai aos olhos curiosos da filha. – Você ainda é pequena para isso. Tem que aprender as letras primeiro, depois as sílabas, depois as palavras, depois as frases… – continuou.

Clara, até então, só sabia dos jornais como papéis que serviam de moldes ou embrulho para as roupas que a mãe costurava; ou ainda para forrar a mesa em que o pai engraxava os sapatos, ou de preenchimento destes, como se fossem pés de gente amassados que se enfiavam neles.

Até então, ela só tivera acesso a livros com imagens, e a partir delas criava suas histórias emendadas. Ver o jornal com imagens e letras, muitas letras sendo lidas pelo seu pai, despertou outra coisa naquela cabecinha inquieta. Fez brotar uma necessidade ainda não sabida. Um desejo ainda não compreendido. Clara queria saber ler.

E não demorou para que a insistência da filha e as muitas outras vezes em que ela pulava da cama mais cedo, só para se jogar no colo do pai enquanto ele lia o jornal, resultassem numa menina que aprendia as letras… ali mesmo, na cozinha, no colo do pai, que passou a dedicar um pouco de tempo para que a filha fosse conhecendo as palavras.

Nesse cotidiano, Clara descobriu que as palavras existiam e que ler era um assombro. Antes que os pais se dessem conta, estava ela pela casa lendo tudo, rótulos de alimentos, etiquetas, caixas de sapato e, logicamente, jornais…

A menina Clara, hoje formada, hoje, não mais menina, não é só uma simples leitora de jornais, tornou-se jornalista. Tornou-se leitora de grandes obras. Leu e lê de tudo, em várias línguas, inclusive. Escreve para grandes revistas e jornais de circulação internacional. A filha do sapateiro e da costureira começou sua carreira já com muito êxito e destaque. Iniciou-a como entrevistadora, daquelas que publicavam suas entrevistas nas páginas amarelas de revistas famosas.

E eis que sua primeira entrevista ocorrera com ninguém mais, ninguém menos que a escritora que dera origem ao seu nome. Clara entrevistou Clarice. Mas daquela entrevista, o que mais a marcou, foi a pergunta que ela recebeu da entrevistada após uma conversa sobre se descobrir escritora.

Clarice respondeu que não escrevia porque era escritora, ela nem se entendia assim, mas escrevia porque era necessário. Ela precisava escrever o que a inquietava. E logo que concluiu isso, lançou uma pergunta a Clara: E você, como se descobriu jornalista?

Ao que Clara, sem hesitar, respondeu: Quando, vendo meu pai lendo um jornal pela primeira vez, eu lhe perguntei: Puquê?

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