Bonecas Reborn: O afeto de luxo que não cabe na realidade das periferias

Nas últimas semanas, um fenômeno tem ocupado debates nas redes sociais e rodas de conversa: as bonecas reborn, hiper-realistas, vendidas por valores que equivalem a meses de salário-mínimo. Enquanto algumas pessoas as tratam como objetos terapêuticos ou substitutos afetivos, nós, da periferia, precisamos perguntar: terapia para quem? Afeto para qual bolso?

O Custo da Sublimação

A psicologia nos ajuda a compreender que, em regra, os nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos não são imparciais ou aleatórios. Eles sofrem influência da nossa situação financeira, da cor da nossa pele e da classe social a que pertencemos. Uma boneca reborn pode custar até R$ 5 mil — o equivalente a quatro meses de salário de uma trabalhadora doméstica, mãe solo, que sustenta três filhos com um salário-mínimo. Enquanto algumas relatam “alívio emocional” ao cuidar dessas bonecas, outras sequer têm tempo para respirar entre uma escala 6×1 e o transporte público lotado. A sublimação, aqui, tem preço de grife. 

Maternidade Real vs. Maternidade de Luxo 

Ao mapear as mulheres negras da minha rede — trabalhadoras em geral, empreendedoras, professoras da rede pública, mães que criam netos abandonados, tias que acolhem filhos da comunidade —, nenhuma delas caberia nesse roteiro. Não por falta de afeto, mas por excesso de realidade. Enquanto uma boneca reborn exige “cuidados” como trocas de roupa, passeios e fotos ensaiadas, as mulheres da periferia estão ocupadas demais cuidando de crianças de carne e osso: filhas que choram de fome, netos que precisam de remédio, adolescentes expostos à violência. 

Essas mulheres não têm a “liberdade” de substituir a maternidade real por uma encenação. Suas vidas são mediadas por urgências que não cabem no universo lúdico das bonecas. Afinal, como relativizar a “dor emocional” de quem brinca de maternidade enquanto, do outro lado da cidade, uma mãe negra enterra seu filho vítima do genocídio? 

O real não se confunde com a fantasia

Intersecções Invisíveis

O debate sobre as reborn não é só sobre classe. É sobre raça. É sobre gênero. É sobre quem tem o direito de performar cuidados sem ser interrompido pela realidade. Nas periferias, as mulheres negras não são “cuidadoras” por hobby: são sobreviventes. São elas que sustentam famílias inteiras, muitas vezes sem ajuda de parceiros ou do Estado. São elas que, mesmo cansadas, assumem crianças abandonadas nas vielas, tornando-se mães de guerra. 

Enquanto isso, o mercado das reborn — majoritariamente branco e de classe média — vende a ideia de que “todo mundo merece um afeto para cuidar”. Mas a quem esse “todo mundo” se refere? Quantas dessas bonecas são presenteadas a empregadas domésticas? Quantas são compradas por mães que trabalham 12 horas por dia?

Uma boneca reborn é um objeto que reflete o abismo social entre quem pode ter uma boneca de R$ 5 mil e quem sequer tem R$ 100,00 para o gás. 

Afeto não é mercadoria, luta é coletiva 

As reborn não são “apenas bonecas”. São sintomas de uma sociedade que monetiza até o afeto, enquanto nega condições básicas para que mães negras e periféricas exerçam sua maternidade com dignidade. Não estamos aqui para julgar quem compra essas bonecas, mas para denunciar um sistema que permite que o luxo de alguns seja construído sobre a privação de muitos. 

Enquanto houver mães chorando por filhos mortos pelo Estado, crianças passando fome e mulheres negras carregando o mundo nas costas, nenhuma boneca de silicone resolverá nossa dor. Nossa terapia está na luta coletiva, na luta por jornada de 30 horas semanais, na creche pública, no salário justo, no fim do racismo, no fim do genocídio de jovens negros, na geração de empregos descentes. O resto é distração de privilégio. 

Ps: Este texto é um convite à reflexão, não ao julgamento individual. Que possamos transformar o incômodo em ação: apoie uma mãe solo da sua quebrada, lute por políticas públicas e nunca se cale diante das desigualdades que tentam normalizar o privilégio como “direito de todos”.

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