Só 9% das mortes por policiais em SP têm perícia no local do crime, aponta pesquisa


Dados são do projeto ‘Mapas da (In)justiça’, da FGV Direito SP. No total, foram analisados 859 inquéritos policiais, totalizando 946 mortes de civis, entre 2018 e 2024. Nenhum PM foi denunciado ao MP. Estudante de medicina é morto com tiro à queima-roupa por PM de São Paulo
Imagem: Reprodução/TV Globo
Apenas 8,9% dos casos de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) no estado de São Paulo, entre 2018 e 2024, tiveram perícia do local do crime, de acordo com pesquisa divulgada nesta segunda-feira (5).
No total, foram analisados 859 inquéritos policiais, totalizando 946 mortes de civis. Do montante, 661 processos possuíam documentação pericial. O levantamento apontou ainda que nenhum policial foi denunciado ao MP nesses sete anos (leia mais abaixo).
Os dados são do projeto “Mapas da (In)justiça”, desenvolvido pelo Centro de Pesquisa Aplicada em Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da FGV Direito SP.
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O estudo revelou que, em São Paulo, nenhum policial foi responsabilizado pelas mortes em abordagens violentas. A pesquisa também enfrentou dificuldades para obter informações de forma transparente. Entre as vítimas, 62% eram pessoas negras. (Leia mais abaixo.)
👉 Qual é a importância do laudo pericial? Os laudos integram o inquérito policial, sendo fundamentais para elucidar a dinâmica dos fatos por produzir prova material. É possível descobrir a posição da vítima, o número e direção dos disparos, a distância dos envolvidos, e se houve sinais de luta ou execução. Em casos de violência policial, a perícia pode confirmar ou desmentir relatos dos agentes, ajudando a garantir responsabilização quando há abuso.
A pesquisa também mostra que:
em 85% das mortes não foi realizado o exame de resíduo de pólvora nas mãos das vítimas, medida essencial para confirmar ou contestar alegações de confronto armado;
em 79,7% dos casos foi realizado apenas o exame necroscópico — procedimento responsável por determinar a causa da morte;
em 332 casos, as vítimas chegaram despidas para a realização do exame necroscópico, o que compromete a análise de vestígios balísticos, como resíduos de pólvora e zonas de tatuagem;
a maioria dos processos (71,5%) apresentou somente um tipo de laudo, evidenciando um padrão de investigação incompleta;
dos 123 casos em que os boletins de ocorrência alegam a preservação da cena do crime, apenas 59 contam com registro de perícia efetivamente realizada no local.
Segundo a pesquisa, em vez de promover uma apuração técnica, rigorosa e imparcial, a perícia frequentemente atua de modo a respaldar as versões apresentadas pelos policiais, reproduzindo apagamentos estruturais.
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Prestação de socorro
Em 83% dos boletins de ocorrência, há registro de algum tipo de assistência às vítimas. Enquanto, em 17% dos casos, não há menção a qualquer tentativa de socorro.
Contudo, segundo os pesquisadores, a alegação de socorro pode, em certos contextos, servir como mecanismo de alteração da cena do crime e de esvaziamento das possibilidades de uma investigação rigorosa.
Quando o corpo é retirado do local do crime, o trabalho da perícia fica prejudicado, sendo difícil constatar, por exemplo, se houve um homicídio ou uma Morte Decorrente de Intervenção Policial.
Em março de 2024, o g1 revelou que pessoas baleadas pela Polícia Militar durante a Operação Verão já estavam mortas quando foram levadas às unidades de saúde, a partir do relato exclusivo de funcionários do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) da Baixada Santista e de um hospital de Santos.
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Vitimização de negros
A análise dos boletins de ocorrência pelos pesquisadores revela um padrão que tende a legitimar previamente a ação dos policiais a partir de duas justificativas genéricas: a “prática de crime” ou “atitude suspeita”.
No universo de abordagens baseadas em “prática de crime”, 51% das vítimas eram negras. Já naquelas motivadas por “atitude suspeita”, a proporção sobe para 75%.
Segundo o estudo, essa distribuição evidencia uma seletividade racial nas práticas de abordagem e no emprego da força, reiterando padrões históricos de criminalização de corpos negros.
“Os dados reunidos revelam um cenário de persistente impunidade, no qual a atuação policial letal é sistematicamente legitimada por narrativas oficiais, sustentadas em registros documentais marcados por seletividade racial, apagamentos e omissões técnicas” explica Julia Drummond, coordenadora-geral do Mapas da (In)Justiça.
Em 78% dos casos, as mortes em decorrência de intervenção policial ocorreram em vias públicas, locais de circulação cotidiana, onde o policiamento ostensivo se intensifica. Nesse contexto, a vitimização de pessoas negras é ainda mais acentuada: 64% das mortes em espaço público atingiram vítimas negras.
👉 Qual é a importância do boletim de ocorrência? O B.O. é o primeiro registro oficial do crime e determina a construção da narrativa inicial dos fatos. Os dados analisados pelo centro de pesquisa da FGV Direito demonstram que os registros em São Paulo “atuam como instrumentos de consolidação de versões que tendem a legitimar a ação letal dos agentes estatais”, longe de serem neutros.
Responsabilização dos policiais
Nenhum policial foi denunciado no Ministério Público de São Paulo nos 859 casos de morte em decorrência de intervenção policial analisados pelo Mapas da (In)Justiça entre 2018 e 2024. Confira os motivos:
em 89,9% dos casos o arquivamento foi fundamentado na legítima defesa;
em 8,7%, no estrito cumprimento do dever legal;
apenas 12 casos (1,5%) não apresentaram qualquer excludente de ilicitude — e mesmo assim foram arquivados sob justificativas como ausência de justa causa ou falta de indícios suficientes de autoria.
Os pesquisadores reiteram que a falta de responsabilização desses agentes estatais por mortes em abordagens policiais também representa uma forma de violência do próprio Estado contra a população.
Transparência dos dados
A pesquisa enfrentou diversos desafios para obter e utilizar dados relacionados à letalidade policial. Esses desafios são decorrentes tanto da falta de transparência institucional quanto da baixa qualidade das informações obtidas.
Segundo Julia Drummond, não existe um banco de dados único que permita a pesquisadores e à sociedade civil acompanhar o “fluxo do sistema de justiça criminal”, isto é, as investigações e os processos.
“De modo geral, a qualidade das informações enviadas pelo Ministério Público é baixa, o que pode significar que eles não conseguem filtrar os casos de MDIP, o que é grave, já que o MP é a principal instituição responsável pelo controle externo da atividade policial. Além disso, o MP deixa a desejar na transparência passiva — os pedidos de informações públicas não disponíveis diretamente pelos órgãos públicos”, explica Drummond.
Procurados, o Ministério Público de São Paulo e a Secretaria da Segurança Pública não se manifestaram até a última atualização da reportagem.
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