Da baiana de acarajé ao governador, do engraxate ao bancário, do arcebispo ao jogador de futebol. Em 22 de abril de 1985, a população de Salvador amanheceu com uma mistura de sentimentos que iam do choque à tristeza. Era feriado nacional decretado por Brasília, mas ninguém estava em clima festivo. Na noite anterior, domingo, 21 de abril, às 22h23, um comunicado médico informava que o presidente Tancredo de Almeida Neves, após mais de um mês hospitalizado, havia morrido.A emoção tomou conta das pessoas porque Tancredo Neves foi o primeiro presidente civil eleito no Brasil após 21 anos de Ditadura Militar. Ele era considerado ‘o pai’ do processo de redemocratização do país. Sua eleição não ocorreu por voto popular, apesar de toda a campanha das Diretas Já, em 1984, mas mesmo via Colégio Eleitoral, a escolha do então governador de Minas Gerais para dirigir os destinos do país nesse momento histórico tão crucial, encheu os brasileiros de esperança.Tancredo Neves iria consolidar o caminho iniciado com as Diretas Já e nos anos de resistência contra a ditadura. No próximo pleito, em 1989, os brasileiros já iriam às urnas. Esse contexto fez com que nos poucos meses entre a eleição do novo presidente, em janeiro de 1985, e a internação em 14 de março, na véspera da posse, uma onda de otimismo inundasse o país. Com a morte do presidente, o vice José Sarney assumiu a presidência, mas ele não tinha a mesma popularidade do titular.Até as crianças, que ainda não votavam, foram afetadas com a morte do presidente, porque viam a emoção dos adultos e ouviam em casa ou nas ruas que “Tancredo era a esperança do povo em dias melhores para o país.“Tancredo é uma figura estelar de um momento político único da história brasileira, que foi o da construção da democracia”, afirma o cientista político Paulo Fábio, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Tancredo foi um ator relevante de um tipo de elite política que viveu desafios importantes. É uma elite política formada depois do período do Estado Novo, depois do período ditatorial que o Brasil viveu até 1945, e que foi formada no período democrático dos anos 1945 a 1964”, acrescenta o especialista.De acordo com Paulo Fábio, Tancredo e os demais atores políticos dessa época pós-Estado Novo, tiveram de lidar com uma democracia incipiente e marcada pela sombra dos anos do período varguista, com o personalismo, populismo e elementos que limitavam o exercício democrático no país. “E, logo a seguir, veio o golpe de 1964, que se tornou uma coisa ainda mais adversa, porque passaram a lidar com um regime autoritário que praticamente interrompe o período de formação, de aperfeiçoamento dessa elite política e do sistema político democrático”, complementa o professor.Muitos políticos brasileiros se exilaram durante a ditadura militar. Tancredo Neves foi um dos que ficou para buscar uma alternativa de oposição ao regime ditatorial. “Tancredo foi uma personalidade que fez parte dessa elite política, que trabalhou nesse segundo momento em condições mais adversas e precisou ter muita virtude para conseguir chegar num terceiro momento em que esses quadros, já mais maduros, mais antigos, lideraram o avanço da redemocratização do país, nos anos 80”.Doença e morteO presidente Tancredo Neves foi internado em 14 de março sentindo fortes dores abdominais. A informação era a de que o mandatário teve uma crise de apendicite e seria operado às pressas. Com o passar dos dias, o quadro clínico se agravou devido a uma infecção hospitalar. O laudo oficial da época dizia que a causa da morte foi infecção generalizada. Em 2005, um novo laudo passou a especificar Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica.Após a morte do presidente, o corpo foi embalsamado e velado em São Paulo. Depois, levado para Brasília, onde foi velado novamente no Palácio do Planalto. Por ter sido eleito antes de adoecer, mesmo sem ter tomado posse oficialmente, Tancredo Neves teve todas as honras de estado compatíveis com o cargo. De Brasília, o corpo foi levado para São João Del Rey, onde ele nasceu e foi também sepultado. O presidente da Câmara Federal, deputado Ulysses Guimarães, que era amigo de Tancredo Neves e também fazia parte da geração que atuou contra a ditadura e na campanha Diretas Já, acompanhou o esquife no avião presidencial.Ulysses Guimarães, mais tarde, também seria o líder da Assembleia Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, essa que está vigente até os dias atuais no país e é chamada de ‘Constituição Cidadã’ por ter inserido pautas sociais importantes no seu texto magno e que, até então, nunca tinham constado no ordenamento das leis do país.“Não é possível pensar em Tancredo sem pensar em Ulisses junto. São eles dois. E é o legado republicano. […] Nós podemos pensar em Ulysses e Tancredo como um legado republicano”, afirma o cientista político Paulo Fábio.Lágrimas do povoA TARDE tem em seu acervo os registros da imensa cobertura jornalística dedicada tanto às Diretas Já, quanto à eleição de Tancredo Neves e ao período da sua internação e posterior morte. A edição do dia 22 de abril de 1985 foi dedicada a mostrar os detalhes do funeral presidencial. Nos dias seguintes, o jornal ainda traria toda a repercussão internacional com a morte do presidente brasileiro da redemocratização e ouviria o clamor do povo nas ruas, dando voz a pessoas de todas as camadas sociais.“Alguns minutos após o falecimento do presidente Tancredo Neves, manifestações de pesar começaram a surgir de todos os rincões do país, como a do cardeal e arcebispo primaz do Brasil, D. Avelar Brandão Vilela, que, ao lamentar profundamente o desenlace, chamou Tancredo de “grande homem, um idealista, construtor da Nova República”, diz um trecho da reportagem que abre a cobertura especial. Mais adiante, o texto continua: “A emocionante corrente de fé e de solidariedade das últimas semanas, enquanto o presidente Tancredo Neves lutava pela vida, só fez crescer o sentimento de união entre os brasileiros”.O editorial do jornal, também em 22 de abril de 1985, ressaltou a consternação do país, mas deixou uma mensagem de otimismo, de que o Brasil não iria recuar no processo de redemocratização, mesmo sem a figura do presidente morto.“O presidente está morto e o país consternado. Porque, mais do que um presidente, Tancredo Neves significava um símbolo, o traço de união da nacionalidade, a esperança de um povo que com ele vibrou em praça pública, enlaçou as mãos e reaprendeu a acreditar. […] O Brasil está triste, mas não retrocede sem Tancredo. A mensagem de renovação que ele plantou é hoje mais do que um compromisso selado na magnífica campanha de mobilização popular pelas diretas, em 84. É um patrimônio do povo que agora será zelado pela sociedade”.A edição de 22 de abril ainda trazia os textos na íntegra dos discursos de José Sarney e de Ulysses Guimarães. Sarney abriu o seu discurso afirmando: “Deus é testemunha de que eu lhe entregaria o melhor dos meus dias para não enfrentar esta hora”.O pronunciamento de Sarney à nação, foi acompanhado em Salvador pela população, em casa e também em qualquer local da cidade onde houvesse um aparelho de TV ligado, como em uma loja de móveis no Centro. A loja abriu as portas mesmo com o feriado nacional decretado, mas em vez de comprar eletrodomésticos, dezenas de pessoas se aglomeraram na porta do estabelecimento para assistir à cobertura do funeral de Tancredo Neves, como relatou uma das reportagens de A TARDE veiculadas na época.Além do feriado nacional e luto oficial de oito dias decretados por Sarney, até então presidente em exercício deste a internação de Tancredo Neves, o nome de Risoleta Neves, viúva do presidente morto, foi inscrito no Livro de Honra na República. A posse de Sarney como presidente de fato no lugar de Tancredo Neves aconteceu sem solenidade, devido ao luto oficial, após anúncio do Congresso Nacional.Fora do Brasil, entidades como a ONU e a OEA enviaram condolências pela morte do líder político. Países da América Latina (Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Costa Rica, Venezuela, Paraguai e Nicarágua); além dos Estados Unidos e dos europeus Espanha, Alemanha e Portugal, também enviaram notas de pesar publicadas por A TARDE na edição de 23 de abril de 1985.O jornal ainda repercutiu com a população a morte do presidente. A enfermeira Cátia Ferreira da Silva, além de lamentar a morte dele, afirmou esperar que “os que ficam no lugar de Tancredo Neves façam o que ele iria fazer. Apesar de Tancredo não ser meu parente, senti muito a sua perda, porque era alguém que iria nos ajudar, tenho certeza”.O bancário e advogado Ailton Marinho disse ao repórter, na época, que esperava a recuperação do presidente e que chegou a rezar por isso. “Tivemos uma perda irreparável. Acredito que a situação política do país vá ficar estável, porque Tancredo Neves não morreu em vão, ele deixou a Nova República construída. Não há condições de golpe, pois o próprio povo não aceita mais isso”, afirmou o entrevistado.O zagueiro do Bahia, Celso Dias dos Santos, afirmou que Tancredo havia dado uma lição de união ao Brasil. Enquanto a baiana de acarajé Maria de Jesus informou que em sua casa o clima era de tristeza como se a família tivesse perdido um parente. Muito triste também ficou o engraxate Laurindo Conceição: “Quando o repórter falou que Tancredo Neves havia falecido, fiquei muito sentido porque achava que ele iria fazer muita coisa pela gente. Alimentava muita fé de que ele vivesse”, declarou o trabalhador.Na Catedral Basílica de Salvador, uma missa in memoriam por Tancredo Neves foi acompanhada por centenas de pessoas que lotaram a nave central da igreja situada no Terreiro de Jesus, como mostram as fotos do período. A celebração, ocorrida às 17h de 21 de abril, foi presidida por dom Thomas Murphy e não contou com a participação do cardeal e arcebispo de Salvador, dom Avelar Brandão Vilela, e do governador da Bahia no periodo, João Durval Carneiro, pois os dois viajaram para Brasília e depois para Minas Gerais, onde acompanharam o funeral de Tancredo Neves.
Há 40 anos a Bahia e o Brasil se despediam de Tancredo Neves
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