Fim de festa pra Juliana

Juliana entrou na sala meio cabisbaixa, mas com aquele olhar de quem quer falar e, ao mesmo tempo, implora pra não ser ouvida. Primeirão do ensino médio, 15 anos, uma mochila maior que ela nas costas, e a alma pesando mais ainda. O professor de Língua Portuguesa, que há tempos já tinha virado um tipo de confessionário ambulante ali no corredor do bloco C de uma escola pública de Marabá, percebeu o sinal. Depois da aula, ela pediu um minuto. Sentaram num banco de cimento sob o ipê que nem flor dava mais, só sombra e história. E foi ali que começou o desabafo.

A mãe viajou com o padrasto também. Uma semana fora, um respiro na rotina acelerada da casa apertada e dos silêncios duros que moram entre adultos que se toleram mais do que se amam. Era pra ser só descanso — pra eles. Mas pra ela, foi liberdade. E com liberdade demais, às vezes a gente se afoga. Convidou a colega da turma, que por sua vez trouxe dois rapazes. Uma festa em casa. Só que não era bem festa. Era um escape. Um daqueles atos impulsivos que a juventude empurra sem freio e que depois cobra com juros.

As noites foram longas, com música alta, camas ocupadas, decisões precipitadas e corpos adolescentes se tocando como se o amanhã não viesse. Mas veio. E veio com a mãe encontrando uma cueca no sofá e uma calcinha que não era da filha no varal. O resto foi berro, quebra-quebra e ameaças. A mãe, armada com a fúria dos que se sentem traídos dentro do próprio lar, gritou que a filha que procurasse outro teto. O padrasto, que nunca foi bom em ser pai de ninguém, só assentiu com o queixo e ligou a TV pra não escutar o choro da menina trancada no quarto.

Foi aí que o professor entrou. Não no quarto, nem na briga, mas na história. Ouviu tudo, com o coração embrulhado e a cabeça tentando decifrar onde a escola falhou, onde a sociedade cochilou, onde o adulto se escondeu. Procurou a direção. A diretora, experiente e calejada, não perdeu tempo: Conselho Tutelar acionado, Ministério Público avisado. Porque educar é também proteger e, às vezes, proteger é entregar.

O caso virou assunto nos corredores da escola, entre cochichos e julgamentos apressados. A menina, que um dia escreveu um poema bonito sobre saudade na aula dele, agora era a “do escândalo”, a “expulsa de casa”. O professor, que só queria ensinar a pontuar frases, agora pontuava feridas abertas. Ele sabia que por trás de cada erro juvenil, quase sempre há um grito de socorro.

O Conselho Tutelar fez o que pôde. Escutou, orientou, protegeu. O Ministério Público entrou em campo e foi firme: não se abandona adolescente como se abandona roupa suja. Buscaram o pai, que vivia na zona rural de Parauapebas, a 270 quilômetros dali. Um homem simples, que plantava milho, criava umas galinhas, um pouco de gado e tinha um sorriso triste de quem perdeu muito pra cidade e agora recebia a filha como quem recolhe um pedaço de si que tinha se perdido.

Juliana foi levada pra lá em silêncio, com a cabeça cheia de interrogações e o coração meio quebrado. A colega, aquela da festa, foi ouvida também. Os rapazes? Esses sumiram no vento que sopra pelas vielas do bairro. E como quase sempre acontece, o peso maior sobrou pra elas.

O professor seguiu dando aula. Mas nunca mais olhou pra sua sala do mesmo jeito. Sabia que ali, entre cadernos e risadas, podia haver novas histórias escondidas, prontas pra explodir. E que talvez o seu maior papel fosse exatamente esse: estar atento.

Porque na escola, às vezes a gente ensina regras de gramática. Outras vezes, tenta ensinar que a vida também tem regras. Mas, principalmente, tenta lembrar que ninguém deveria ser expulso por errar. E que, às vezes, é preciso perder tudo pra, enfim, encontrar um novo lugar pra chamar de casa.

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.

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