Memória em disputa: um acervo para eternizar a pandemia que não podemos esquecer

Em outubro de 2018, a antropóloga Heidi J. Larson, professora de Risco e Decisões Científicas na London School of Hygiene & Tropical Medicine, publicou um artigo na revista Nature no qual revelava um de seus maiores temores diante do que, até então, parecia uma possibilidade distante: uma futura pandemia. O que mais a preocupava não era apenas o vírus em si, mas algo que ela considerava ainda mais contagioso e difícil de conter — a desinformação viral.

Larson traçava um alerta que soava profético: a eclosão de uma nova doença poderia desencadear reações emocionais intensas — e, potencializadas pelas tecnologias digitais, essas emoções teriam força suficiente para corroer a confiança nas vacinas, reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das maiores conquistas da medicina moderna. A desinformação, dizia ela, precisava ser tratada como uma ameaça real à saúde pública global.

Pouco mais de um ano depois da publicação do artigo, suas previsões se concretizaram com inquietante precisão. A pandemia de covid-19 não apenas trouxe um vírus mortal que tirou milhões de vidas no mundo todo, mas veio acompanhada de uma avalanche de informações falsas e condutas anticientíficas que ampliaram o alcance da tragédia. O Brasil, infelizmente, foi um dos exemplos mais marcantes desse cenário.

Em 2003, o filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe publicou o ensaio intitulado Necropolítica, no qual apresenta o conceito de uma política de morte exercida pelo Estado — uma lógica de poder que define, de forma direta ou indireta, quem deve viver e quem pode morrer. Durante a pandemia de covid-19, diversos pesquisadores identificaram a adoção dessa lógica pelo Estado brasileiro, que tratou a crise sanitária com negligência deliberada: minimizou os riscos do vírus, contrariou as recomendações de autoridades internacionais de saúde, reduziu vidas perdidas a estatísticas e promoveu o uso de medicamentos e tratamentos sem eficácia comprovada. 

No Rio Grande do Norte, a capital potiguar foi o exemplo mais palpável dos efeitos em cadeia das decisões negligentes tomadas pelo Governo Federal: criou-se uma verdadeira “guerra” entre as ações adotadas pela Prefeitura de Natal e o Governo do Estado (o “nós e eles”, uma tática clássica do fascismo, segundo o filósofo estadunidense Jason Stanley). Seguir as recomendações de cientistas e autoridades de saúde pública representava, nessa narrativa, desejar que negócios fossem dizimados, deixando sem sustento milhares de famílias potiguares. De fato, sem um programa robusto de iniciativa federal que levasse a sério os efeitos, a possível duração da pandemia e seus impactos na economia, foi o que acabou acontecendo — com ou sem distanciamento social. 

É impossível deixar de citar, ainda, a promoção contínua de medicamentos sem comprovação científica para o tratamento da covid-19 — o famoso “kit covid”. As ações adotadas pela Prefeitura chegaram a tal ponto que foi necessário que a Justiça do Rio Grande do Norte pedisse para que o Poder Municipal retirasse a ivermectina do protocolo de tratamento de pacientes da covid-19 na capital. 

Todas essas ações parecem ter ficado no passado — um passado que, em geral, preferiríamos esquecer. Mas não deveríamos. A história recente do Brasil é marcada justamente pelo esquecimento de suas maiores tragédias políticas e manifestações de autoritarismo. É o caso da ditadura militar, cuja memória ainda resiste em meio a tentativas persistentes de reescrever o passado, retratando o golpe como uma suposta “revolução necessária” — um país imaginário onde não havia crimes, a economia prosperava e a “ameaça comunista” era contida. Nada poderia estar mais distante da realidade.

No caso da pandemia, muitos também parecem se esforçar para redesenhar a tragédia aos olhos da população. Durante a sessão da Câmara Municipal de Natal, realizada na última terça-feira, 8 de abril, um episódio escancarou o quanto essa narrativa segue em disputa. Na discussão sobre a proposta de concessão do título de cidadão natalense ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a vereadora Thabatta Pimenta (PSOL) lembrou que a lentidão do Governo Federal para garantir a vacinação em massa contribuiu para ampliar o número de mortes — incluindo a de sua própria mãe. Sua fala foi rebatida com deboche por um vereador do mesmo partido de Bolsonaro que exibe, em seu nome, uma patente militar. “O choro é livre”, ironizou ele, diante do plenário.

Para os familiares e amigos dos mais de 715 mil brasileiros mortos, o choro nunca cessou. A ausência não foi preenchida, e nunca será. E isso não é motivo de riso. É por isso que é preciso manter viva na população a memória coletiva da tragédia sanitária e humanitária que foi a pandemia de covid-19 no Brasil. 

Em março de 2025, cinco anos após a declaração da pandemia de covid-19 no Brasil, o Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), grupo de pesquisa multidisciplinar vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lançou o Acervo da Pandemia de Covid-19. O projeto, que levou dois anos para ser desenvolvido, conta com a colaboração de pesquisadores e estudantes da Unifesp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), além de coletivos de mídia e da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil).

O Acervo reúne evidências sobre a atuação de diferentes atores institucionais ao longo da pandemia, com ênfase nas ações relacionadas ao negacionismo científico e à disseminação de desinformação. Os materiais, disponibilizados em texto, áudio e vídeo, podem ser acessados gratuitamente na plataforma, constituindo uma fonte rica de informação para pesquisadores, jornalistas, historiadores e, sobretudo, para a sociedade brasileira.

Os conteúdos estão organizados em dezessete eixos temáticos, como “vacinação”, “uso de máscara”, “isolamento e aglomerações”, “tratamento precoce” e “memória, verdade, justiça e reparação”, entre outros. Cada item é acompanhado de um texto que refuta, com base em evidências científicas disponíveis à época, as declarações e condutas documentadas, revelando, de forma contundente, a negligência que marcou a condução da pandemia no país.

Embora a maior parte do conteúdo trate de falas e ações no âmbito nacional, estamos trabalhando para aumentar a abrangência e incorporar novos materiais de fatos mais locais, de todas as regiões do Brasil. O Acervo é colaborativo: qualquer pessoa pode sugerir novas evidências que serão analisadas e, se aprovadas, incorporadas à plataforma.  Para enviar uma contribuição, acesse o item “colabore com o acervo” (https://acervopandemia-souciencia.unifesp.br/colabore-com-o-acervo/).

Ainda estamos longe de alcançar a justiça que as vítimas da covid-19 e seus familiares merecem. Preservar a memória coletiva dessa tragédia, no entanto, é o primeiro passo nesse caminho: para que não se esqueça, para que jamais se repita. 

Ricardo Ireno/SoU_Ciência
Ricardo Ireno/SoU_Ciência

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