Matéria de antimônio

As farmácias atualmente se multiplicam como os gorgulhos nas tigelas de feijão da minha infância. Naquela época nem era preciso aplicar técnicas apuradas para que os rapa-cuia brotassem, como se fossem os derradeiros frutos da vagem. Em cada quadra, em cada esquina e, brevemente, no novo condomínio que se ergue em frente da minha casa, eclodirá uma nova loja de remédios para abrilhantar a vizinhança. As farmácias conquistaram o prêmio máximo, na categoria onipresença, concorrendo com duas redes de supermercados. A estratégia da expansão comercial se assemelha. Do comunitário ao exclusivo.O lounge das residências ostenta uma farmácia que qualquer faixa etária pode acessar, mas os idosos ocupam a faixa preferencial. Possuem, à disposição, um farmacêutico para chamar de seu. Francamente, preferia um Rembrandt para chamar de meu.Reconheço a conveniência de ter, a dois passos de casa, um paiol de medicamentos para manter o estoque de prescrições renovado. É a lógica da acumulação com o apelo da exclusividade. O tratamento é personalizado. O nicho está estabelecido.Ao informar seu CPF, é possível forjar um relacionamento pessoal com o farmacêutico que não te deixará esquecer o colírio para hidratar e aliviar a irritação ocular. Uma puta sacada! Se não fosse um artifício de controle disfarçado de cuidado, poderia até me sentir afagada. Um simulacro em cada esquina.A pergunta que não pode calar. O desconto da farmacêutica ou do sindicato? O escracho do gorgulho é o mesmo. Ele acelera a decomposição e só prolifera no acúmulo. Do feijão às oleaginosas. Eles migram e detonam tudo. O apelo comercial com uma pitada de sarcasmo.Por enquanto não preciso de muitas pílulas, mas elas se multiplicarão conquanto me alongue em dias. A julgar pelas demandas do meu gato quase centenário, precisarei reservar a parte mais bojuda do salário em sacrifício aos gorgulhos, considerando a prevenção como o melhor cenário. O investimento com a saúde e a proliferação de besouros de forte mandíbula guardam semelhanças. Para não dizer que não citei os planos de saúde que fortemente nos abocanham.A saúde deveria ser um bem inestimável, mas devido ao seu alto custo e acesso restrito, não se oferece da mesma maneira a todos. É servida em cápsulas, em frascos e sachês. As patentes prometem tornar impotentes os pobres carunchos. Uns dizem que saúde começa na panela, nas folhas e raízes, na pluralidade dos nutrientes que não estão disponíveis nas drogarias. Outros advogam os emplastos da botica, as manipulações herméticas da indústria. Um saber não invalida o outro, mas os acessos definem destinos.Reporto-me a uma cena multidisciplinar durante um seminário que reuniu em São Paulo os maiores especialistas no tratamento de câncer, dois anos antes da pandemia. O espetáculo possível da cura. A sofisticação de tratamentos e a propedêutica da exposição. Estes medicamentos alcançam uma parte ínfima da população. Cada casta, uma odisseia.Retomo a Rembrandt, quatro séculos de mão em mão, sendo cortado, costurado, envernizado. Atacado pelos besouros, muitas vezes. O remédio que cura, também pode acelerar as partículas rumo a eternidade. Para salvar a tela do buraco do caruncho, goma laca. Para restituir a sacralidade, a Adoração dos Reis foi submetida a avaliação de especialistas renomados.A obra monocromática elevou o seu valor à enésima potência quando se verificou que havia marcas de repintura. A genialidade das pinceladas únicas e certeiras passaram por uma revisão de perspectiva. Rembrandt mudou os ângulos das cabeças dos reis em direção ao que realmente importava. Poderia ouvir um assim seja, com relação ao acesso à saúde dos brasileiros. Um delírio de reposicionamento para além de objeto da atenção à saúde. Por uma salvação que não advenha de mecenas, messias ou do antimônio, mas de uma tintura ancestral e coletiva que, como um emplasto de figo, cicatrize as úlceras da desigualdade e mate a fome de justiça.*Psicanalista
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