A dor que persiste e a luta que não esquece

Era final da tarde do dia 1º de abril quando vi minha mãe, Fátima Sá, parar diante de uma das passarelas na entrada de Natal. O sol já começava a cair, tingindo de laranja os prédios ao longe, enquanto o vento soprava leve, quase cúmplice do silêncio que nos envolvia. Foi então que ela leu a faixa estendida sobre a cidade: “Não esqueceremos / Sem anistia. Glênio Sá, presente.

Ela parou. Leu. E chorou.

Minha mãe — aquela mulher que sempre foi armadura, trincheira e farol — chorou. Aquelas palavras abriram uma fresta, romperam o silêncio imposto por décadas e deixaram escapar lágrimas represadas por tanto tempo. Uma lágrima que dizia tanto quanto aquela faixa: que os nossos não foram esquecidos, que a memória é uma forma de justiça e que a luta permanece.

Sou filha de duas vítimas da ditadura. Nasci em uma sede clandestina do Partido Comunista do Brasil, em Natal, numa casa onde a política era parte da vida, onde a consciência enfrentava o medo. Cresci cercada por uma efervescência que me ensinou a questionar, a resistir. Mas cresci, também, enfrentando as cicatrizes profundas deixadas por um regime que tentou apagar a memória, destruir corpos e calar vozes.

Quando meu pai, Glênio Sá, morreu, eu tinha apenas seis anos. Meu irmão, Gilson, tinha nove. A dor da perda, somada à perseguição que continuou mesmo após sua morte, deixou marcas em nossos corpos. Eu desenvolvi diabetes tipo 1 como reação ao trauma. Nossa casa foi arrombada três vezes. Minha infância foi atravessada por ausências — e por uma presença constante: a da repressão, que parecia não querer nos deixar respirar.

Minha mãe, sem tempo para o luto, teve que enfrentar a ditadura e a vida, a solidão e as contas, a repressão e o cuidado. Nunca a vi demonstrar fragilidade — pelo menos, não diante de nós.

Aquela homenagem, feita por organizações sociais e sindicais, trouxe à tona o que há tanto tempo pulsa em nós: lembrar é uma forma de resistência. É dizer que a história não foi enterrada, que os nossos não foram vencidos. É cobrar o que ainda nos é devido: justiça.

A ditadura não acabou enquanto não houver responsabilização. Enquanto houver homenagens a torturadores em ruas, praças e monumentos. Enquanto os desaparecidos não forem encontrados. Enquanto não forem reconhecidas todas as formas de repressão que atingiram indígenas, camponeses, moradores de favelas, negros e negras deste país.

O choro da minha mãe foi, para mim, um grito. Um grito de justiça, de memória, de verdade. Um grito que denuncia a omissão do Estado, que ainda não responsabilizou os criminosos da ditadura, que segue resistindo a abrir seus arquivos, que insiste em negar o reconhecimento de vítimas como meu pai — cuja história de luta permanece à margem dos registros oficiais.

E foi por isso que minha mãe chorou. Porque, naquele instante, em que uma cidade inteira podia ler o nome de Glênio estampado no alto da passarela, um pouco da verdade que nos foi negada se impôs sobre o esquecimento.

Mas não foi apenas minha mãe que chorou. Foi o Brasil que, aos poucos, começa a ouvir as vozes que por tanto tempo foram caladas. Que começa a entender que não há democracia possível sem memória, sem verdade, sem justiça.

E que nossos mortos, como meu pai, Glênio Sá, estão presentes. Hoje e sempre.

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