No vaivém de mochilas térmicas e buzinas apressadas, milhares de entregadores de aplicativo circulam diariamente pelas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, levando refeições prontas às casas de quem pode pagar por elas. O que não chega à mesa de muitos desses trabalhadores, porém, é o próprio alimento. A fome, como constata a pesquisa “Entregas da Fome”, divulgada pela organização Ação da Cidadania, é presença constante entre os que passam o dia entregando comida sem ter a garantia de uma refeição digna para si.
De acordo com os dados levantados no Rio de Janeiro e São Paulo, 32% dos entregadores entrevistados vivem algum grau de insegurança alimentar. Entre eles, 13,5% enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, convivem com a redução da qualidade e da quantidade dos alimentos ou até mesmo com a escassez total de comida para todos na família. O índice supera a média nacional registrada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), que está em 9,4%. Mais alarmante ainda: 8% dos entregadores estão em insegurança alimentar grave, a definição mais clara da fome no país.
A contradição é gritante. Como define a própria pesquisa, “enquanto os entregadores entregam comida, passam fome”. A maior parte desses trabalhadores atua de forma informal, sem direitos trabalhistas e desprovidos de uma rede mínima de proteção social. Cerca de 56,7% trabalham todos os dias da semana, e praticamente o mesmo percentual (56,4%) trabalha mais de 9 horas por dia — com 36% deles ultrapassando as 10 horas diárias. Ainda assim, a renda mensal de quase 40% é inferior a dois salários mínimos.
A pesquisa também evidencia um grau profundo de autofinanciamento compulsório desse trabalho: 99% dos entregadores custeiam do próprio bolso o plano de dados para o celular — sem o qual o trabalho simplesmente não acontece. Mais de 93% não têm seguro para o aparelho, 90,6% não possuem seguro de vida, 90% atuam sem plano de saúde e 67,6% não têm seguro para o veículo com que realizam as entregas.
Esse modelo de trabalho, sustentado por plataformas digitais, é criticado por especialistas e organizações sociais por reforçar a precarização. Rodrigo Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, não hesita em classificá-lo como uma forma de “escravidão moderna”:
“Fica evidente para a gente que esse modelo de trabalho do jeito que está é um tipo de escravidão moderna, onde o trabalhador entra com todo o trabalho, o risco, o ferramental, o tempo e recebe em troca contrapartidas que não são suficientes para que essa pessoa possa ter uma vida digna.”
O relatório aponta que a narrativa da “autonomia” vendida pelas empresas de aplicativo é uma ilusão. Ainda que teoricamente possam escolher quando trabalhar, quase 60% dos entregadores afirmam que precisam trabalhar todos os dias para sobreviver, e um número semelhante precisa se manter na rua por mais de nove horas diárias. A liberdade vendida no discurso é, na prática, uma engrenagem de sobrevivência.
A vulnerabilidade também se reflete no alto índice de acidentes. Quase 41% dos entrevistados já se envolveram em algum acidente de trabalho, dos quais 42% resultaram em afastamento. E ainda assim, a imensa maioria não conta com qualquer seguro ou assistência em caso de necessidade médica.
A pesquisa, realizada com 510 entregadores das duas maiores metrópoles do país, mostra ainda que 42,4% deles enfrentam algum grau de depressão, ansiedade ou estresse. Desses, 71,4% não recebem qualquer tipo de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico.
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