Vale encantado: santuário ecológico está perto da orla; conheça

Boa parte dos soteropolitanos nunca ouviu falar, mas em Patamares existe um verdadeiro santuário ecológico: um remanescente de Mata Atlântica com cerca de um milhão de metros quadrados, lar de mais de 200 espécies de árvores e uma centena de aves, além de dezenas de mamíferos, répteis e anfíbios. Diferente do Parque de Pituaçu, um dos mais conhecidos da capital baiana, o Parque Ecológico do Vale Encantado, que fica ao lado, só começou a ganhar visibilidade nos últimos anos, impulsionado pelo trabalho de voluntários e ONGs que se dedicam à sua preservação.

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A riqueza do parque pode até passar despercebida por muitos em Salvador, mas já ganhou reconhecimento internacional: em 2021, a Unesco concedeu à área o título de Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA). Para a bióloga Tatiana Bichara, do Coletivo SOS Vale Encantado, que atua na preservação e divulgação da área, o título não poderia ser mais justo. “Salvador já foi 100% coberta pela Mata Atlântica, uma das florestas mais biodiversas do planeta, mas perdeu 90% de sua vegetação original. Hoje, restam poucos fragmentos, e o Parque do Vale Encantado é um dos mais preservados”.Foi Tatiana, junto com outras integrantes do coletivo, quem guiou a reportagem de A TARDE em uma trilha pelo parque. A primeira coisa que chama atenção é a dificuldade de acesso: para entrar no santuário, é preciso entrar primeiro num antigo condomínio fechado de casas em Patamares. De lá, o caminho segue por uma descida relativamente curta até o vale de área verde. A bióloga explica que há outros acessos ao parque, mas, por enquanto, esse ainda é o mais utilizado.A trilha que o SOS costuma percorrer com estudantes e outros grupos interessados em conhecer o Vale Encantado cobre de 1% a 2% da área total do parque. Mas é o suficiente para encantar qualquer amante da natureza. Durante o percurso, uma pergunta inevitável surge: como um refúgio de Mata Atlântica tão bem preservado pode existir no coração de Salvador, a poucos minutos de carro da praia? “Muitas vezes saímos da trilha direto para um banho de mar”, conta a fisioterapeuta Ada Pedreira, moradora do Garcia, que se tornou guia voluntária do Vale Encantado após a pandemia.À medida que avança pela trilha, Ada vai se empolgando. “Olha, essa aqui é uma gameleira, árvore sagrada no candomblé”, aponta, antes de acrescentar: “Além da importância ambiental, esse parque carrega uma forte ancestralidade. Estudos indicam que tribos indígenas e quilombos já ocuparam essa região.”Diversidade de biomasAlém da força ancestral e da riqueza da Mata Atlântica, o Vale Encantado se destaca por outra característica que o torna único: a diversidade de biomas. “O que me chama a atenção aqui é esse mosaico de diversidade. Temos vários tipos de vegetação convivendo em uma mesma área”, observa a bióloga Cláudia Inês da Silva, doutora em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais e professora visitante de Biologia da UFBA, em sua primeira impressão sobre o parque.De fato, junto com a Mata Atlântica, o parque abriga brejos, áreas de restinga, cerrado, cinco lagoas e o único rio em estado natural de Salvador, o rio Passa Vaca. Essa diversidade cria microclimas dentro do Vale: enquanto as áreas abertas são mais quentes, a mata fechada mantém um ambiente mais fresco. O local também conta com árvores frutíferas, herança de quando abrigava uma fazenda, como grande parte das áreas de Salvador. “Na verdade, é um remanescente de Mata Atlântica com essas pequenas zonas de transição, o que torna esse espaço ainda mais diverso”, explica Cláudia Inês.A fauna é um espetáculo à parte. Embora muitos animais se mantenham afastados das trilhas e tenham hábitos noturnos, por isso avistá-los nem sempre é fácil, o Vale está repleto de vida. Segundo Tatiana Bichara, ainda é possível encontrar por lá espécies como porcos-espinhos, tamanduás e jacarés-de-papo-amarelo. Sem falar na grande diversidade de aves, incluindo papagaios, corujas e gaviões, que atrai ornitólogos à região. E é bom ficar atento às cobras. “Por isso, orientamos sempre para que não peguem em cipós, nem se apoiem em árvores, para evitar acidentes”, alerta Ada Pedreira.A bióloga Cláudia Inês explica que muitas das aves que habitam o parque migram de diferentes partes do mundo. “O mais interessante é que elas têm zonas específicas de reprodução. Os filhotes nascem, crescem e, depois, retornam para se reproduzir exatamente no mesmo local onde nasceram”, explica. “Ao identificar essas espécies, sabemos que o Vale Encantado é rota de voo, descanso e, possivelmente, reprodução. Mais um motivo para preservar essa área.”

Cláudia Inês da Silva, Sandra, Tatiana e Ada.

|  Foto: Clara Pessoa | AG. A TARDE

E há também as borboletas. No meio da trilha, o grupo cruza com a estudante de biologia Ana Vitória, acompanhada por duas amigas. Ela está ali fazendo um levantamento faunístico das borboletas do Vale Encantado para seu projeto de pesquisa, que abrange outras áreas de Salvador. “Meu projeto dura o ano inteiro, e venho aqui coletar todos os meses”, conta. Para o estudo, ela monta redes e armadilhas para capturar os insetos.Trilhas e ‘banho de floresta’O fato de as três jovens caminharem sozinhas pelo parque com tranquilidade revela outra característica do Vale Encantado: a ausência de relatos de assaltos ou violência, mesmo sendo uma área isolada da cidade. Tatiana Bichara tem uma teoria para isso: “O Vale Encantado é uma área pública, mas está cercado por condomínios. De certo modo, isso ajudou a preservá-lo e também trouxe uma proteção contra invasões”, explica ela.Essa segurança relativa permite que o coletivo SOS Vale Encantado organize trilhas com estudantes ou outras pessoas que queiram conhecer os santuários. Uma das atividades mais procuradas é o chamado banho de floresta.“Durante essa atividade, o silêncio é total. Estamos aqui para ouvir os sons e se conectar com a floresta. Andamos devagar para poder observar a copa das árvores e não precisar ficar prestando atenção na trilha”, explica a guia Ada Pedreira. “Estar no Vale Encantado é uma experiência única e tem que ser bem aproveitada. Toda vez que entro aqui, fico arrepiada”, reforça Tatiana, mostrando os pelos do braço.Segundo a bióloga, muitas escolas, principalmente da região de Patamares e de áreas próximas, procuram o SOS para organizar passeios pelo parque, onde os alunos têm aulas práticas sobre o meio ambiente. Grupos de pesquisadores também buscam o coletivo para realizar estudos na área. “Já trouxemos cientistas para observar répteis, por exemplo”, conta ela. Passeios noturnos também aconteceram, e até um grupo de ioga meditou no local.O coletivo agora busca organizar as trilhas do vale, realizando a limpeza de trechos feitos pelo vegetação, além de instalar um portal, placas de sinalização, corrimões e outras estruturas de madeira ao longo do percurso. O grupo tem também um projeto para capacitar guias. Tatiana destaca o potencial do Vale Encantado, inclusive para o ecoturismo. “Um refúgio como este de Mata Atlântica tem o poder de atrair muitos visitantes, o que contribuiria para sua preservação”, afirma, ressaltando que o Instagram do SOS Vale Encantado já é seguido por pessoas de diversas partes do mundo.Se hoje o parque começa a ser conhecido por pessoas de outros países, a sua preservação começou de forma bem local. Foram os residentes dos condomínios que deram o pontapé inicial na luta pela preservação da área, como explica Sandra Soares, moradora do condomínio C, em Patamares. “Esse movimento começou com os moradores da região e foi se expandindo pela cidade. Hoje, ele tem repercussão até internacional”, conta ela.Apoio à preservaçãoTatiana destaca o sólido apoio dos moradores dos condomínios vizinhos à preservação da área. “Já foram feitas consultas e entrevistas com os moradores, e 100% das respostas foram pela manutenção da área de conservação”, diz ela, lembrando que as áreas verdes agregam valor econômico às propriedades ao redor. “Quem não gostaria de acordar ouvindo o canto dos pássaros?”, brinca.Apesar da mobilização do coletivo e dos moradores da região, a preservação dessa área depende em grande parte das ações da Prefeitura de Salvador. Isso ocorre porque, ao contrário do Parque de Pituaçu, que é gerido pelo governo do Estado, o Vale Encantado está sob responsabilidade da administração municipal.Em 2016, o local foi reconhecido como parque ecológico no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) – instrumento que orienta o crescimento e a expansão da cidade. No entanto, em dezembro de 2019, a Câmara de Vereadores aprovou o Projeto de Lei nº 299/19, que alterou os limites do parque, alegando o uso de cartografias desatualizadas na sua delimitação e não levando em consideração a situação fundiária dos terrenos, o que resultou na inclusão de propriedades particulares e institucionais.Em 2018, o Coletivo SOS Vale Encantado, em parceria com o Instituto Mãos da Terra e com recursos do Ministério Público da Bahia, desenvolveu estudos técnicos para embasar a criação da Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral do Vale Encantado. Esse material servirá de referência para os debates sobre o novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador. A expectativa é que a Prefeitura encaminhe o projeto à Câmara de Vereadores ainda este ano. “Estamos acompanhando os debates sobre o novo PPDU e nossas expectativas são as melhores”, afirmou Tatiana.Corredores ecológicos: a conexão que fortalece a biodiversidadeImagine um cenário onde o Vale Encantado e o Parque de Pituaçu estivessem fisicamente conectados, formando uma passagem natural que facilitasse o deslocamento de animais e a dispersão de sementes. Agora, amplie essa visão para outras áreas remanescentes de Mata Atlântica da Paralela e adjacências, reduzindo o isolamento das populações e fortalecendo a biodiversidade em toda a região. Esse é o objetivo dos corredores ecológicos, projeto que a bióloga Tatiana Bichara busca tirar do papel.

Vale Encantado

|  Foto: Clara Pessoa | AG. A TARDE

“A criação de corredores ecológicos é essencial para evitar que esses refúgios de Mata Atlântica e vida silvestre se transformem em ilhas cada vez menores e isoladas”, defende Tatiana Bichara, doutoranda em Ecologia na UFBA. “Ao conectar esses fragmentos, independentemente do tamanho, promovemos o trânsito da vida”, acrescenta a bióloga Cláudia Inês da Silva.Segundo Tatiana, o Vale Encantado desempenha um papel fundamental na manutenção da biodiversidade, não apenas por sua extensão, mas também por sua localização estratégica entre os remanescentes de Mata Atlântica. O projeto prevê, além do aumento da cobertura vegetal de cada área, a conexão desses fragmentos por meio de passagens aéreas, terrestres e subterrâneas para a fauna, minimizando os impactos negativos das rodovias. A bióloga acredita que até mesmo na Avenida Paralela essas estruturas poderiam ser implantadas. “Seria, inclusive, um incentivo para que mais pessoas conhecessem essas áreas”, destaca.Para Cláudia Inês, os corredores ecológicos são essenciais para fortalecer a biodiversidade desses refúgios isolados. “Quando conhecemos a composição florística, os polinizadores e os dispersores que habitam cada fragmento, podemos identificar o potencial de compartilhamento ou complementariedade de espécies que se perderam ao longo do processo de fragmentação”, explica.Cláudia, que está em Salvador para desenvolver um projeto de pesquisa sobre cidades saudáveis, destaca a importância das áreas verdes em ambientes urbanos para a saúde física, mental e emocional, além de sua contribuição para a preservação da biodiversidade. “Um dos aspectos que pretendo estudar aqui é a identificação de ilhas de calor, que impactam diretamente a qualidade de vida da população”, explica.Segundo ela, esses bolsões de calor ocorrem devido à exposição do solo, à presença excessiva de concreto e à refletância da energia solar no ambiente. “Quanto mais concreto e solo exposto, e quanto menos árvores e áreas verdes, maior é a retenção de calor, favorecendo a formação das ilhas de calor.”A pesquisadora conclui que essas ilhas de calor estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. “É como se analisássemos um cenário local para compreender um contexto mais amplo, em nível regional e global”. Ou seja, além de todos os outros benefícios, refúgios ambientais como o Vale Encantado são essenciais para a regulação térmica de Salvador.

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