Manipulação eleitoral e a legislação brasileira

Considerando a realização de mais uma eleição em outubro de 2024, é necessário saber o que é permitido e o que não é permitido segundo a legislação eleitoral brasileira. Historicamente, foram elaboradas leis que pune criminalmente quem atenta contra a lisura do processo eleitoral. O artigo 323  da Lei n.4.737 de 1965 proibia qualquer pessoa de divulgar, na propaganda eleitoral ou durante o período de campanha  “fatos sabidamente inverídicos em relação a partidos políticos ou a candidatos, capazes de exercer influência perante o eleitorado”.

Em  30 de setembro de 1997 foi aprovada uma extensa lei sobre eleições, a Lei 9.504. No  Artigo 45, II parágrafo proíbe “ usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito”, ou seja,  proíbe o uso de montagens em campanhas políticas sejam para ridicularizar ou beneficiar um candidato, assim como são previstos no Código Penal a calúnia, difamação e injúria (Artigos 138, 139 e 140) que também podem e são usados em eleições.

E o Tribunal Superior Eleitoral, a cada eleição, aprova Resoluções que devem discipliná-las. A mais recente, foi aprovada em fevereiro de 2024 para as eleições de outubro. Foram 12 Resoluções com o objetivo de “regular as condutas de partidos, coligações, federações partidárias, candidatos e candidatas”, determinando a obrigação de identificar conteúdos manipulados por Inteligência Artificial.

A novidade em relação às anteriores é a proibição do uso de  deepfake, compreendido como “conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa vida, falecida ou ficticia”.

Este é um aspecto muito importante. Usado a partir de 2017, o uso  sistemático de deepfake no processo eleitoral levou a justiça à proibi-lo.  De que se trata? Deepfake é a junção das palavras deep learning (aprendizagem profunda) e fake (falso).Trata-se de uma técnica que usa imagens e sons reais, utilizando inteligência artificial para substituir rostos e vozes em vídeos, com falas e ações descontextualizadas e manipuladas,  com o objetivo de chegar o mais próximo possível da realidade.

Embora o objetivo seja evitar seus usos (e abusos) nas eleições, o uso de deepfakes é bem mais amplo. Em maio de 2023 a Kaspersky, empresa global de cibersegurança e privacidade digital fundada em 1997 na Rússia, publicou um documento com o titulo Deepfake em 2023: os três principais cenários de ameaças. Sendo uma das principais empresas especializadas em segurança e esquemas de fraudes virtuais  tem levado “à criação contínua de soluções de segurança e serviços para proteger as empresas, governos e consumidores por todo o mundo”. Atualmente, segundo dados da empresa, são mais de 400 milhões de utilizadores protegidos pelas suas tecnologias e cerca de 220.000 clientes corporativos.

No documento se afirma que houve um aumento de 900% em um ano (de 2022 a 2023) “no número de vídeos utilizando deepfake on-line, muitos casos de fraudes com a técnica ganham as manchetes do noticiário, com relatos relacionados a assédio, vingança e golpes com criptomoedas”.

E que são três principais esquemas que utilizam essas técnicas: deepfakes para fraudes financeiras, pornografia e o que eles chamam de riscos de negócios, salientando que “Além da estrutura financeira, os cibercriminosos precisam de uma enorme quantidade de dados: fotos, vídeos e áudios da pessoa que desejam personificar, até diferentes ângulos e expressões faciais”. Nas fraudes financeiras “os deepfakes podem ser usados para engenharia social, onde criminosos usam imagens avançadas para representar celebridades e atrair as vítimas para seus golpes”. Os de pornografia que “violam a privacidade das pessoas, usando vídeos falsos” incluindo  os “de celebridades que mostravam seus rostos sobrepostos a corpos de atrizes pornôs em cenas explícitas” e os de riscos de negócios “são usados para atingir empresas para crimes como extorsão dos administradores da empresa, chantagem e espionagem industrial”.

E para se proteger dessas  ameaças, salienta a importância de práticas de cibersegurança especialmente por empresas “não apenas na forma de software, mas também em termos das habilidades de TI desenvolvidas”, reforço do “firewall humano” treinando os funcionários para que entendam o que são deepfakes, como funcionam e a consulta a fontes de notícias confiáveis.

Como consta no documento “A ignorância continua sendo um dos maiores fatores de proliferação de mentiras. É importante conhecer as principais características dos vídeos que devem ser observadas para evitar se tornar uma vítima: movimentos irregulares, alterações na iluminação de um quadro para outro, mudanças no tom da pele das pessoas, piscadas estranhas ou ausência de piscadas, lábios não sincronizados com a fala ou artefatos digitais na imagem”. E, claro, oferecem ferramentas para o monitoramento e enfrentamento das ameaças constantes dos usos (e abusos) de deepfakes.

Em relação às eleições, é fato que sua utilização ampliada e sem controle, o uso ilegal dessa tecnologia pode comprometer a lisura do processo eleitoral com a produção e difusão de imagens distorcidas usadas principalmente pela extrema direita – mas não exclusivamente –  para desqualificar seus adversários, como ocorreu no Brasil nas eleições presidenciais de 2018 (quando passou a ser utilizada) e em 2022(que continuou sendo). Porque, com baseem técnicas de Inteligência Artificial,  os deepfakes são capazes de manipular conteúdos de vídeos e áudios e assim conseguem criar experiências que podem se passar como verdade e a possibilidade de  influenciar os resultados de eleições.

Quais os seus possíveis impactos eleitorais?  No artigo Deepfake e shallowfake: o que são e como podem impactar as eleições, afirma-se queCom o uso de softwares de inteligência artificial, principalmente o machine learning, que utiliza dados para aprender com eles, são usados algoritmos para fazer o reconhecimento da imagem que será copiada e, a partir de redes neurais artificiais, os algoritmos classificam  imagens, reconhecem falas, detectam objetos e são capazes de aprender o formato de rostos, se atentando às expressões faciais e se adaptando e reagindo às luzes e sombras”.

Nas eleições são muito difundidas especialmente nas redes sociais apesar das iniciativas  por parte de justiça eleitoral que proíbe  sua difusão.  Mas nem sempre consegue. Na eleição presidencial de 2018, por exemplo, no “mar de mentiras” que impulsionou à candidatura de Bolsonaro, quando Lula era candidatado e liderava todas as pesquisas de intenção de voto, circularam muitos vídeos com montagens, áudios falsos, retirados do contexto, cujo objetivo era o de atingir à sua  reputação, como uma montagem do depoimento do ex-ministro de Antonio Palocci no qual ele afirmava que Lula tinha recebido dinheiro e imóveis para a sua ‘aposentadoria’ e  outros como um no qual se afirma  ele teria roubado 350 mil toneladas de ouro de Serra Pelada para doar a Venezuela.

Nas eleições de 2022, as mentiras continuaram com vídeos e áudios com falsificações, imitações da voz de Lula, etc. Mas desta vez não adiantou. Em 2018, mesmo com mentiras e manipulações, ele liderou todas as pesquisas até ser preso pelos motivos que se revelaram depois, mas que muitos já sabiam na época,  por um juiz parcial que se tornou ministro do seu adversário. No entanto, mesmo usando as mesmas estratégias de mentiras na eleição de outubro de 2022, desta vez não adiantou. Não teve um juiz aliado do seu principal oponente e mesmo com a continuidade da sucessão de mentiras amplamente difundidas nas redes sociais Lula venceu a eleição e se tornou presidente da República, mais uma vez.

Foram vários exemplos na eleição de 2022, além da profusão de fake news (ver a matéria intitulada  Como as fake news têm impactado as eleições de 2022, publicada no jornal Le Monde Diplomatique Brasil no dia 28 de outubro de 2022) houve também a continuação do uso sistemático de deepfakes.

 Um artigo  publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 22 de outubro de 2022  Como deepfakes assombram eleições e pavimentam o futuro da arte assinada por Gustavo Zeitel  mostra um dos exemplos do uso dessa tecnologia para desqualificar e atacar adversários: “Letras garrafais na tela anunciam um ‘encontro de dois bandidos’. Ao primeiro estrondo da vinheta do Jornal Nacional, se segue a voz de William Bonner, repetindo o dizer do vídeo. Nesse momento, o candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva do PT, cumprimenta o vice, Geraldo Alckmin, do PSB. ‘Perdão, imagem errada. A imagem seria de outro ladrão, digo, de um ladrão de verdade’, disse Bonner, como se constrangido por uma gafe”.

“Publicado no TikTok há dois meses, o vídeo de 14 segundos se alastrou por todas as mídias sociais, compartilhando o conteúdo falso. O jornalista nunca enunciou aquelas palavras e tampouco existiu uma edição do telejornal com a mesma montagem. Se há quatro anos os eleitores descobriram o perigo das fake news, a manipulação em imagem e som do Jornal Nacional prenunciou o uso de deepfakes nestas eleições”.

O fato é que existe leis que proíbem à propagação de mentiras (Código Eleitoral) com  dispositivos que vedam a propagação e o impulsionamento de conteúdos que se destinam a desinformar, mentir e manipular o eleitorado e pune propagação de fake news com multa e detenção.

Mas a questão fundamental é: como fiscalizar e punir um número gigantesco de postagens especialmente quando difundidas em grupos fechados ou “bolhas” – que são imunes à checagens para saber se são falsas ou verdadeiras? E não é por falta de agências que fazem isso como, entre outras, a  Lupa, Comprova e Aos fatos.

Assim, mesmo proibidas, as mentiras, fake news, manipulações  e os deepfakes continuam sendo utilizadas e inegavelmente são instrumentos de persuasão eficazes (persuadir não com fatos e argumentos, mas com  mentiras e descontextualização), ou seja, a existência de leis que punem que faz uso sistemático em eleições não tem conseguido impedir sua difusão.

O problema central é o de como proceder para punir quem faz uso sistemático dessas estratégias em eleições? A resolução de TSE aprovada em fevereiro de 2024, entre outras deliberações, estabelece que as plataformas digitais, por exemplo,  que mantiverem conteúdos que atentem contra a democracia e incitem o ódio, assim como manifestações racistas, homofóbicas ou nazifascistas deverão ser responsabilizadas na esfera civil e também administrativa, caso não remova conteúdos e contas das redes sociais. O que tem sido feito nesse sentido?

 No caso de deepfake, como e o que fazer para enfrentar essa nova modalidade de manipulação e desinformação? Como evitar seu uso indiscriminado nas redes sociais, considerando que amplia a possibilidade de difusão de mentiras, influenciando a opinião pública, e com impacto significativo no processo eleitoral?

É crime inventar e difundir conteúdos falsos, editar vídeos com intenção deliberada de enganar, espalhando falsidades para influenciar eleitores e sendo crime, a Justiça Eleitoral tem condições de impedir o uso e disseminação? É o que poderemos constatar, não apenas nestas, como nas próximas eleições, afinal o uso de tecnologia para fins eleitorais quando usadas para mentir e manipular os eleitores como o uso de deepfake coloca sob suspeição o que é de fundamental importância nas democracias: as eleições e a sua lisura.

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