Brasília-DF – Antônio Teodoro Castro, Dinaelza Santana, Helenira Rezende, Glênio Sá, Luiz José da Cunha, Divino Ferreira de Sousa, Dorvalino Porfírio de Sousa, Honestino Guimarães, Marcos Antônio Dias Batista, Elson Costa, Emanuel Bezerra, Luiz Maranhão e tantos outros brasileiros participaram de um ritual de cura, nesta sexta-feira (30), no auditório do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em Brasília.
Um ritual de cura realizado no dia internacional das vítimas de desaparecimento forçado.
Estavam todos presentes, donos de seus lugares, em cartazes com nomes grafados em tinta; em camisetas com a estampa de suas silhuetas e rostos; em faixas com mensagens cobrando punição aos assassinos e torturadores da ditadura militar; e nas falas de seus familiares, ora afetuosas e ternas, ora exalando revolta, mas sempre emocionadas relatando as histórias por trás dos nomes propositadamente desconhecidos do povo. Todas essas saudades ocuparam assento por direito à memória, e também à verdade e à Justiça.
O evento marcou a reinstalação da comissão especial dos mortos e desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar, desativada pelo governo Bolsonaro faltando 15 dias para o mandato do ex-presidente acabar. A volta do órgão, criado na gestão de Fernando Henrique Cardoso, é fruto de uma pressão incansável de familiares que vivem há mais de 40 anos procurando notícias que respondam à indagação transformada em música por Gonzaguinha, na letra de Achados e Perdidos: “Quem me dirá onde está, aquele moço Fulano de tal ? Filho, marido, irmão, namorado que não voltou mais / insiste um anúncio nas folhas dos nossos jornais / Achados, perdidos, morridos, saudades demais”.
Mães, tias, avós, filhos, sobrinhos e netos que buscam essas respostas terão, mais uma vez, o apoio do Estado brasileiro. O ato de reinstalação da comissão contou com a presença do Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Sílvio Almeida, que fez um discurso bastante emocionado em razão das dificuldades que enfrentou para cumprir a promessa de reativar o órgão. Entre as pessoas citadas, o ministro chorou ao fazer referência à presença no evento de Marco Aurélio Santana Ribeiro, chefe de gabinete da presidência da República.
A comissão especial de mortos e desaparecidos foi desacreditada por muitas pessoas, inclusive por alguns familiares, tamanho eram os afagos que o presidente Lula fez nos últimos meses aos militares, setor contrário à apuração dos fatos ocorridos entre 1964 e 1985.

Sílvio Almeida comparou o retorno da comissão com um ritual de cura e afirmou que a luta por memória no Brasil ganhou outro sentido:
– As políticas de memória são também políticas de cura, políticas de cuidado, políticas de respeito. Tenho dito que a memória deixou de ser apenas uma batalha para fazer Justiça e para erigir barreiras para que o arbítrio não retorne. A luta pela memória se transformou numa batalha contra o revisionismo histórico em sua nova floração que agora se dá no mundo digital. A luta pela memória, portanto, é uma luta fundamental do nosso tempo e nós seremos olhados pelas gerações futuras sobre a capacidade de, nesse momento histórico, contribuirmos com os limites para que aqueles que odeiam a democracia, odeiam o Brasil, odeiam o desenvolvimento nacional, não possam tomar de nós aquilo que foi construído pelo esforço pelo povo brasileiro. Essa comissão será muito importante para que as narrativas fantasiosas pelo passado brasileiro sejam contraditadas, para que a verdade seja dita e derrote a tentativa feita por alguns setores de enxovalhar a memória de quem morreu lutando pela liberdade”, disse.
“Não pode haver um torturador nesse país que não seja punido por crime de tortura”, diz representante das famílias de mortos e desaparecidos

Uma das lideranças do movimento de familiares de mortos e desaparecidos vítimas da ditadura, a baiana Diva Santana pediu punição aos torturadores e afirmou que o grupo vai ajudar o governo brasileiro a encontrar as respostas que o país precisa. Ela perdeu a irmã, Dinaelza Santana Coqueiro, assassinada na mítica guerrilha do Araguaia, a principal experiência de luta armada do Brasil no campo:
– Essa comissão especial é o único instrumento oficial que a sociedade civil tem para fazer a releitura dos males que a ditadura fez ao povo brasileiro. Eu tenho quase 50 anos nessa luta, mas em cada ato desse minhas feridas sangram. É uma ferida aberta que precisa ser fechada, e será fechada com essa luta nossa. Não pode haver um torturador nesse país que não seja punido por crime de tortura. E quero deixar aqui uma mensagem ao ministro Sílvio Almeida e ao presidente Lula de que estaremos juntos na construção da democracia desse país, na luta pela memória, verdade, justiça e reparação do Brasil”, afirmou.
Reparação

A comissão terá novamente na presidência a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, destituída do posto pelo governo anterior. Ela contou ue foi convidada por Nilmário Miranda, primeiro ministro dos Direitos Humanos, ainda no governo Dilma Rousseff, e atual chefe da assessoria especial de defesa da democracia, memória e verdade da pasta.
– Nilmário me ligou perguntando se eu aceitava ser a presidenta da comissão de novo, eu disse que já tinha dado minha contribuição, mas ele insistiu dizendo que seria uma questão de reparação, que a ideia era colocar de volta o que havia sido destruído, uma questão de reparação. Então eu disse que concordava”, disse a presidenta, que adiantou na solenidade que a comissão encaminhará em breve um pedido ao Conselho Nacional de Justiça para que altere a causa mortis das vítimas do Estado brasileiro já reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade.
Além de Eugênia na presidência, a comissão especial de mortos e desparecidos políticos terá ainda Vera Silvia Facciolla Paiva e Maria Cecília de Oliveira Adão (representantes da sociedade civil), Natália Bonavides (representante do Congresso Nacional), Rafaelo Abritta (representante Gonzaga do Ministério da Defesa) e Ivan Cláudio de Garcia Marx (representante do Ministério Público).
Entenda como vai funcionar a comissão especial de mortos e desparecidos políticos

A comissão especial de mortos e desaparecidos vítimas da ditadura terá como coordenador geral o advogado Caio Cateb. Segundo ele, com a retomada, a comissão voltará a realizar as reuniões ordinárias trimestrais, em Brasília, e se debruçará nas próximas semanas sobre o planejamento para 2024 e 2025.
A primeira reunião da comissão ocorreu sexta-feira, na parte da tarde, de forma ampliada, logo após a solenidade que marcou a reinstalação, com a participação de familiares, jornalistas, servidores do governo federal e membros da sociedade civil.
Cateb conta que a comissão trabalha com dois eixos norteadores: a retomada das atividades de busca e identificação dos desaparecidos políticos:
– Embora sejam tratadas sempre juntas, a busca e a identificação são duas atividades diversas. Buscar é diferente do que já temos mapeado. Esses são os dois eixos norteadores da comissão. Agora, com a retomada, vamos voltar a ter reuniões ordinárias trimestrais e o planejamento interno, que vai estabelecer os trabalhos para 2024 e 2025. Mesmo antes da reinstalação, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania retomou boa parte dos instrumentos interrompidos pelo governo anterior. Agora vamos construir o planejamento de forma conjunta com os familiares e a sociedade civil”, afirmou.

Entre as ações já definidas pela comissão está a retificação na certidão de óbito dos 434 mortos reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade, reconhecendo o Estado brasileiro como o causador da morte da vítima. Essa alteração no documento será possível a partir de uma parceria já confirmada com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2018, a comissão conseguiu a retificação de 10 certidões. Já a Comissão Nacional da Verdade conseguiu alterar apenas duas certidões.
“Todas as certidões serão certificadas levando em conta os 434 mortos reconhecidos pela comissão nacional da verdade. Há ainda alguns casos particulares, como o de estrangeiros, mas serão tratados caso a caso”, explicou o coordenador.
Com o aumento do número de mortos e desaparecidos reconhecidos pelo Estado brasileiro após investigações da CNV, há uma expectativa na comissão especial de novos pedidos para indenização.
– Há casos em que a CNDP nunca recebeu requerimento para análise e possível pedido de pagamento de indenização para essas famílias. Então a comissão pode vir a tratar esses casos que nunca foram deliberados”, adiantou o coordenador.
Outra iniciativa já em planejamento pela comissão é a realização do 2º Encontro Nacional de Familiares de Mortos e Desaparecidos Vítimas da Ditadura. O primeiro e último evento do tipo ocorreu em 2018.
“É um espaço para apresentar os trabalhos da comissão, momento de coleta de material genético para aqueles que quiserem doar, criação de Grupos de Trabalho específicos como o do Araguaia, Vala de Perus e outros para debater estratégias e planejamento. É um espaço importante de escuta e também entender quais são as demandas e prioridades dos familiares”, destacou.
Mais jovem representante da comissão, Natália Bonavides cita promotor argentino que levou torturadores para a cadeia

A deputada federal Natália Bonavides foi indicada pela comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal como representante do Congresso Nacional na comissão especial. A potiguar é neta do advogado cearense Aníbal Bonavides, cassado pela ditadura militar, em 1964. Ela compareceu à solenidade com um vestido branco. Bordados em vermelho, os nomes de 12 vítimas da ditadura no Rio Grande do Norte. Ela usou esse mesmo vestido na posse do presidente Lula, em 1º de janeiro de 2023.
Um dos projetos da parlamentar em tramitação na Câmara Federal tem relação com a pauta da comissão. A deputada potiguar defende a proibição de homenagens a torturadores e agentes da repressão em prédios públicos no Brasil. O projeto já passou pela comissão de justiça e está na comissão de direitos humanos da Casa.
Representante mais jovem da comissão, Natália iniciou o discurso citando o promotor argentino Julio Strassera, responsável por denunciar torturadores e agentes da repressão da Argentina em 1985.
“’Essa é a nossa oportunidade, e talvez seja a última’. Essa frase é do promotor argentino Julio Strassera, quando do julgamento dos militares acusados de crimes cometidos contra a humanidade, um julgamento que aconteceu na Argentina, em 1985. Infelizmente até aqui nosso país teve a impunidade no seu processo de transição. Então, o contexto em que eu uso essa frase, é bem diferente, ainda assim muito importante. A reinstalação da comissão especial de mortos e desparecidos políticos é uma oportunidade para o estado brasileiro, para que seja dada respostas às pessoas que merecem respostas. Essa comissão foi ilegalmente interrompida e dias depois aconteceu ataques a instituições brasileiras, em 8 de janeiro de 2023. E um assunto não se separa do outro porque os assuntos numa democracia não se separam. O que tem acontecido na recente história do nosso país tem inteira ligação de como o tema da memória, da verdade e da justiça foi tratado no Brasil por tanto tempo. E até hoje”, afirmou.
“Aqui não vem ninguém”, desabafa irmã de vítima da ditadura

Ainda que a comissão especial tenha sido instalada pelo governo Lula, o evento mereceu pouca atenção de outros setores da gestão. Além do ministro da pasta envolvida no órgão, Sílvio Almeida, e da presença do chefe de gabinete da presidência da República, Marco Aurélio Santana Ribeiro, nenhum outro ministro do governo apareceu para prestigiar o evento. Do parlamento, só dois deputados participaram: A representante da comissão, Natália Bonavides, e o deputado Ivan Valente (PT-SP).
As ausências foram sentidas por alguns familiares. Eliane Castro herdou da mãe, há 31 anos, a procura por informações do irmão, Teodoro Castro, assassinado na guerrilha do Araguaia. Ela destacou a frustração de não contar com o apoio de um governo popular nesse momento:
– Acho uma falta de consideração. Se fosse pra dar medalha ou lançamento de livro todas as pessoas de governo estariam aqui. Não quero que ninguém segure na nossa mão, mas que mostre pelo menos que se importam conosco. Uma das nossas mágoas é que eles não se importam com a gente. Repito: se fosse para lançamento de livro ou medalha apareciam muitos, mas aqui não vem ninguém. A gente tenta saber se eles têm algum carinho com a gente, mas nunca tem. Eu sei que eles têm perdas, nós somos solidários, mas não vejo essa mesma solidariedade com a gente. Mas de qualquer forma foi muito bonito, e faremos de tudo pra que corra tudo bem”, concluiu.
Presidenta do comitê estadual no Rio Grande do Norte quer investigação ampliada para casos pós-redemocratização

O Rio Grande do Norte foi representado pela jornalista e pesquisadora Jana Sá, presidenta do Comitê estadual de Memória, Verdade e Justiça, órgão criado em junho de 2024 pelo Governo do Estado. Ela é filha do líder comunista Glênio Sá, único potiguar a participar da guerrilha do Araguaia. Natural de Caraúbas, município distante 300 km de Natal, Glênio sobreviveu à prisão e tortura, mas morreu em 1990, num acidente automobilístico suspeito. A família não acredita na versão oficial e luta para provar que a tragédia foi, na verdade, um assassinato forjado por agentes da repressão.
Segundo Jana Sá, o caso do pai dela não é o único sob suspeita de envolvimento de militares pós-redemocratização. Por isso, ela defende que a comissão especial de mortos e desaparecidos amplie o escopo das investigações para os casos não esclarecidos. Durante a primeira reunião do órgão, a presidenta Eugênia Augusta Gonzaga pediu que a jornalista oficializasse o pedido e requerimento oficial.
“O caso de meu pai exemplifica a necessidade urgente de elucidar os assassinatos políticos que continuaram a ocorrer mesmo após a redemocratização. A sociedade brasileira precisa entender que a repressão não acabou com o fim da ditadura. O aparato repressor continuou e continua a agir. É nesse sentido que chamo a atenção desta comissão para a violência política que persistiu após a redemocratização. Precisamos investigar e reconhecer os casos de militantes que perderam a vida em circunstâncias que refletem a continuidade das práticas repressivas e a impunidade. Proponho que esta Comissão avance na investigação e no reconhecimento dos casos de militantes mortos após a redemocratização, como parte da luta por Memória, Verdade e Justiça”, afirmou.
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