A fotografia dela rolava no grupo de Whatsapp obrigatoriamente masculino. Grupo de brotheragem, de amigos de farras, churras, peladas, caçadas e pescarias…
Na foto, ela se esbaldava de natureza e preenchia a paisagem feito uma Iara… Dourando-se, aguando-se. De biquíni, pele branca, refestelava-se ao sol… Banho de poço, água doce. Boca rosa, cabelos de fogo, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, segurava um drink de frutas, sorria feliz… Energizava-se ao sol, sobre os lajedos que margeavam aquele paraíso.
A imagem abria-se nos celulares de muitos marmanjos naquele instante. O assunto era ela. Era a foto. E era uma tiração de onda só.
– Hei, galado. Olha a namorada de Paulo aí.
– Minha mesmo, não. Pedro é quem gosta desse tipo.
– Deixa de ser galado, seu galado! Tu quem não pode ver uma dessas que cai de boca.
– Cai de boca, é!? KKKKKKKKK
– Eu sei quem cai de boca, e né só de boca, não!
– Homi, deixe a noiva de Paulo em paz.
– Minha noiva o quê, seu porra?! Quem num tira o olho quando ela chega na área é tu, porra!
E a conversa foi descambando pra uma baixaria sem fim… Tão baixo era o nível que nem vale à pena reproduzi-la. O discurso era machista, misógino, pornográfico, desrespeitador, desumanizador, transfóbico.
Não sei se disse, mas a fotografia era de uma jovem Trans. Conhecida da turma por ser amiga de infância de alguns, por morarem em uma cidade pequena e terem estudado na mesma escola, por se conhecerem das festas, dos balneários, dos clubes locais. Gente de cidade de interior que conhece Deus e do mundo e os fundos de seu Raimundo.
Ela ficou sabendo da chacota que faziam da foto. Soube da baixaria toda. Recebeu prints. Um dos membros do grupo era um amigo querido, próximo demais. Sentiu-se incomodado. Quando percebeu o tom da conversa, saiu. Sentiu-me mal. Gostava dela de fato. Para além da amizade, um arco-íris. Amigo coloridíssimo. Teve medo de ser alvo da “brincadeira”.
Mesmo não estando, foi… Em algum momento lembraram que ele era amigo demais.
– Homi que é macho não tem “amigo traveco”. Se tem é porque tá comendo…
– Ou tá sendo comido KKKKKKKKK – cortou um deles a mensagem do outro.
E se seguiram muitas risadas, muitos áudios, muitas figurinhas feitas de filmes da indústria transpornô.
– Esse José tá sacando dessa história. Parece que só vê filme com “traveco”. Olha a ruma de figurinha que ele tem, rapá!
– Rapaaaaaaz! KKKKKKKKKK
E mais zoerira, e mais chacota, e mais transfobia recreativa foi se desenrolando, até que a bola de um jogo qualquer em uma trave qualquer chutada por um jogador qualquer de um time qualquer desviou completamente a atenção dos “cabrones” da inocente imagem da Travesti que, em seu dia ensolarado, não imaginava para o quão obscuro lugar estavam a empurrando, ela e sua boca rosa, sua pele branca, seus cabelos de fogo, seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, seu drink de frutas e seu sorriso feliz.
Quando ela leu os prints, não se assustou… O Paulo, o Pedro, o José e os outros todos do grupo, TODOS, sem exceção, já haviam tirado casquinha da boneca. Um beijo, um sarro, uma foda, um caso de meses, de anos… Ela já ouvira da boca de todos eles as mesmas ameaças, os mesmos discursos:
– Se tu contar pra alguém, você se fode comigo!
– Num chegue nem perto de mim quando eu tiver com os caras, com minha noiva, com minha família…
– Cuidado pra ninguém descobrir… Senããããão…
Na hora: raiva, indignação, ódio. Vontade de escancarar tudo… Na cabeça um plano pra fazer a mulher, a namorada, a ficante de cada um deles pegar no flagra… Um plano pra cidade inteira ficar fofocando pelo resto da vida.
Voltou-se pros prints com os olhos em brasa, de choro e ira, e se viu enraiada de sol, em seu lindo biquíni vermelho que contrastava tão bem com sua pele. Estava linda, estava plena… Entendeu por que aquela macharada toda já tinha se rendido a ela. E sorriu. E gargalhou. Gargalhou de tudo, de todos eles. Largou o celular…
Astuta feito uma Capitu, abriu o guarda-roupa, escolheu uma roupa bem sexy. Tomou um banho, besuntou seu corpo com seu melhor hidratante, empiriquitou-se toda. Destacou seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulda”. Perfumou-se estrategicamente. Ligou pro amigo que a havia alertado sobre a conversa do grupo dos “cara” e perguntou:
– Onde vai ser a farra hoje?! Vou aparecer pra dar um abraço nos meninos. Não diga a ninguém que eu vou. Quero fazer uma surpresa.
E gargalhou, com a mesma energia do sol que a iluminava na bendita da foto. Naquela noite, saiu pronta para botar fogo em um deles, ou em todos, um por um…
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