Presidencialismo de coalizão e o governo Lula

Lula foi eleito presidente da República pela terceira vez, contando, em sua base inicial, com o PT, PCdoB, PV, PSB, Psol, Rede Sustentabilidade, Solidariedade, Avante, Agir e Pros. Após vencer a eleição, a expectativa era ampliar a base de apoio e garantir maioria no Congresso Nacional. Nesse sentido, Lula, consciente da necessidade de formar uma base de apoio no Congresso, articulou a inclusão  de outros partidos, como União Brasil, PSD, MDB, PSDB, Republicanos, PP, Cidadania e PDT. 

A expectativa era contar com o apoio de 312 deputados federais e 51 senadores, garantindo maioria nas duas Casas legislativas. Dois anos de governo se passaram, e os fatos são inegáveis: ele não conseguiu.

Atualmente, observa-se que União Brasil, Republicanos, e PP têm ministérios no governo, mas não são 100% fiéis a Lula. O PSD, por exemplo, também integra do governo de Tarcisio de Freitas, do Republicanos, como a ex-ministra de Bolsonaro, Damares Alves, ambos opositores do governo. O União Brasil é o partido de Ronaldo Caiado, que tem pretensões de se candidatar pela oposição à presidência da República (como um dos nomes da direita) e o PP tem  como  presidente Ciro Nogueira, que faz oposição ao governo (apoiou  Bolsonaro, de quem foi ministro da Casa Civil).

A questão relevante é saber como garantir a governabilidade tendo de se compor com muitos partidos, especialmente com partidos divididos no apoio, como os três citados, que não garantem seus votos em matérias de interesse do governo no parlamento.

O fato é que o governo não tem maioria no Congresso e tem enfrentando enormes dificuldades em algumas votações importantes.

Há bancadas com muitos  parlamentares no Congresso, cujos integrantes, majoritariamente,  fazem oposição ao governo, como a chamada Bancadas da Bala, da Bíblia e do Boi (BBB).  Só a frente Parlamentar da Agricultura (foi criada em 2002 com o nome Frente Parlamentar de Apoio à Agricultura e em 2008 passou a ser chamar Frente Parlamentar da Agricultura) tem 340 integrantes, sendo 290 deputados e 50 senadores. Destes, apenas um é do PCdoB, Daniel Almeida (BA) e cinco do PT (Patrus Ananias, MG; José Guimarães, CE; Nilto Tato,SP; Vander Loubet, MS e Zé Neto, BA. (A lista, com o nome de todos os integrantes foi atualizada em 18 de julho de 2024  e está disponível aqui).

É como este congresso, majoritariamente conservador e de direita que caracteriza o atual presidencialismo de coalizão, um arranjo institucional que implica a  necessidade de fazer amplas alianças para governar (garantir as condições de governabilidade) que tem sido uma das principais características de todos os governos que se sucederam à ditadura  (1964-1985). Ou seja, a formação de uma base de apoio parlamentar no Congresso Nacional é essencial para evitar uma paralisia decisória (embates entre o Executivo e o Legislativo) que pode ter, entre suas consequências, um golpe de Estado, como ocorreu em 1964 (que associado a outros fatores, resultou em 21 anos de ditadura).

O  termo presidencialismo de coalizão foi utilizado  pelo cientista político Sérgio Abranches,  desde do artigo pioneiro, publicado em 1988 (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34) e publicações posteriores (artigos acadêmicos e livros como Presidencialismo de coalizão – Raízes e evolução do modelo político brasileiro, Editora Companhia das Letras, 2018) no qual mostra, com dados,  como os partidos dos presidentes eleitos são minorias no Congresso Nacional e dependem de coalizões para governar, de José Sarney (1985-1990) a Lula (2023-2026).

Quem tentou fazer diferente, não conseguiu, como Bolsonaro, que, na campanha eleitoral de 2018, usou como uma de suas estratégias, ampliar a descrença na política, nos partidos e nos políticos e se apresentar  como “alguém de fora do sistema” (ele que exercia  mandatos desde 1991 e foi filiado ao PDC, PPR, PPB, PP, PTB, PFL, PSC, PSL e agora no PL) e a ’’recusa” de governar de acordo com o modelo institucional vigente, que, segundo ele, era baseado no “toma lá, dá cá”, considerado espúrio, com suas inevitáveis práticas de clientelismo e corrupção.

Como se tratava apenas de retórica, ele não conseguiu acabar nem como as práticas de clientelismo e muito menos com a corrupção. Houve uma tentativa inicial de governar sem uma base parlamentar sólida no Congresso Nacional, contando apenas com o apoio dos partidos que haviam feito parte da coligação vitoriosa. Ao se recusar a negociar com os parlamentares e partidos, Bolsonaro levou ao que Sergio Abranches chamou de o “protagonismo retaliatório do parlamento”, que, em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade pós-ditadura colocou o presidente em um “ arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo”. Como se constatou,  essa forma de governar não durou muito tempo,  e o velho padrão, com o chamado Centrão à frente, foi reconstituído, com um poder ampliado, com o controle do orçamento federal.

O fato é que esse modelo, por ser baseado em negociações com vários partidos, com suas demandas por verbas, cargos etc., em troca de apoio político, garante por um lado, as condições para a governabilidade, mas, por outro, tem seus custos e não raro, o presidente da República acaba se tornando refém dessa “base aliada”, e quando ocorre uma crise, como a saída desses partidos, o impeachment pode ser uma de suas consequências,  como aconteceu em 1992 com Fernando Collor e em 2016 com Dilma Rousseff.

Agora, no terceiro ano de mandato, Lula tem um enorme desafio para garantir a governabilidade e aprovar reformas estruturais, em meio a um Congresso no qual é minoria. No momento, as dificuldades de se aprovar projetos como de regulamentação da reforma tributária e a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil.

E uma questão mais ampla a ser respondida: com uma base de apoio tão ampla e diversa, com partidos sem afinidades programáticas e ideológicas, é possível  dar continuidade ao processo de reconstrução do país, depois do legado desastroso (em todas as áreas) da gestão anterior?

A continuidade desse arranjo institucional coloca um aspecto relevante quando se pensa na formação de uma base do governo Lula: o fato do Brasil ter um dos parlamentos mais fragmentados do mundo. Desde a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, muitos partidos que integram o Congresso Nacional, em 1990, eram 19 partidos; em 1994, passou para 21; em 1998, diminuiu para 20; em 2002, para 19; em 2006, aumentou para 2; em 2010, para 22; em 2014,  para 28, em 2018, para 30; e em 2022, 23 partidos, considerando as federações (PT/PV/PC do B) e Federação PSDB/Cidadania.

Hoje, o que se pode considerar como base fiel do governo Lula são os parlamentares do PT, PSB, PCdo B e Psol, que somam cerca de 130 dos 513 deputados. Os partidos do Centrão têm 2/4 da Câmara dos Deputados, em torno de 250 deputados e seus aliados, a direita e extrema direita, cerca de ¼ . Ou seja, a maioria do Congresso contra o governo e isso explica o esforço de Lula para tentar compor maioria, fazendo o que se pode fazer: concessões.

Para aprovar um Projeto de Lei, por exemplo, são necessários 257 votos,  e para uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC),  308 na Câmara dos Deputados e 49 no Senado (ambos em dois turnos de votação).

O desafio de Lula é como reverter esse cenário adverso, que inclui, neste momento, uma perda de popularidade (que não é irreversível). Entre seus objetivos está incluir na coalizão o Centrão. A que custo?

No dia 20 de fevereiro de 2025, durante uma reunião ministerial, Lula comentou a relação do governo com o Congresso e disse “Eu quero conversar com vocês sobre os partidos que estão alinhados conosco. Temos vários partidos, eu quero que esses partidos continuem juntos, mas estamos chegando ao processo eleitoral e a gente não sabe se os partidos que vocês representam querem continuar trabalhando conosco ou não”.

No Brasil, a Constituição de 1988 garante ao presidente da República um expressivo poder de agenda, como a iniciativa legislativa preferencial, a determinação da tramitação em urgência de seus projetos, a exclusividade de iniciativa em matérias orçamentárias, e ainda legislar por decretos e medidas provisórias. No entanto, contar com o apoio do Congresso Nacional é fundamental.

Quem não fez isso, como Bolsonaro no início, teve consequências, como várias derrotas em votações de seu interesse, como o cancelamento dos decretos sobre posse e porte de armas, a devolução pelo presidente do Senado de uma Medida Provisória pela qual se pretendia restabelecer a transferência da FUNAI e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura (que já havia sido rejeitada pelo Congresso em maio de 2019), entre outros.

Compor maioria no Congresso não é apenas distribuir verbas e cargos a aliados: exige negociações e habilidade política. As concessões são inevitáveis, mas com o risco de ficar refém do parlamento, como ocorreu com o governo (golpista) de Michel Temer, que se livrou, por duas vezes, da abertura de um processo de impeachment justamente por ter sabido compor uma maioria, assim como Bolsonaro, que teve o apoio não apenas do Procurador-Geral da República, um aliado importante, como no Congresso Nacional, com os partidos que integravam o Centrão e especialmente na presidência da Câmara dos Deputados, com Arthur Lira e os mais de 100 pedidos de impeachment que sequer foram analisados.

Mas é fato que para  construir e manter uma coalizão, em especial com muitos e diferentes partidos,  é preciso ceder. Ou seja, o presidente tem que ter não apenas a disposição, mas também a capacidade de formar uma coalizão consistente, de construir uma agenda, respeitando as diferenças e pluralidade de interesses. Ao fazer isso, ele tem de necessariamente compartilhar com o Congresso Nacional “parte dos bônus decorrentes desse poder” como diz Sérgio Abranches.

E Lula já mostrou sua capacidade de articulação (e conciliação) e agora enfrenta resistência no Congresso Nacional, onde não tem maioria. E se ainda é cedo para especulações sobre as composições de partidos para as eleições do próximo ano, as articulações devem anteceder, agir antes, desde que o apoio dos partidos não seja apenas retórica, mas um  compromisso com e dos partidos. Como fazer isso a não ser cedendo às legendas mais espaço no governo? Mas será suficiente para garantir a reeleição de Lula?

Na impossibilidade de se constituir no país um novo arranjo institucional que não seja o presidencialismo de coalizão, enquanto durar, com este ou outro nome, a necessidade de constituir maioria permanecerá, com os problemas inerentes a esse processo, que continua sendo um grande desafio não apenas para o governo Lula, como para qualquer governo.

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