As mulheres no centro do mercado de tatuagens clandestinas da Coreia do Sul

Narr trabalhava como tatuadora na Coreia do Sul há dois anos quando teve uma experiência assustadora.

“Quando a sessão de tatuagem estava prestes a terminar, pedi ao cliente para verificar a tatuagem no espelho”, diz ela. “Em vez disso, ele começou a abrir o zíper da calça, revelando que não estava usando cueca.”

Narr educadamente disse a ele para subir o zíper e saiu da sala, mas quando voltou, ele ainda estava se exibindo.

“Ele disse algo como: ‘Você quer fazer um filme comigo? Temos uma cama e não tem ninguém aqui'”, diz ela. “Fiquei realmente assustada.”

“Eu disse a ele para parar de brincadeira. Respondi casualmente porque tinha medo de que mostrar raiva ou medo pudesse piorar as coisas. E se isso acontecesse, eu não teria conseguido denunciar à polícia.”

Narr não se sentiu capaz de ir à polícia porque, desde uma decisão da Suprema Corte de 1992, a tatuagem foi classificada como um procedimento médico na Coreia do Sul. Na prática, isso significa que é preciso ter uma licença médica para fazer uma tatuagem.

Qualquer pessoa que fizer uma tatuagem sem credenciais médicas enfrenta penalidades severas, incluindo até cinco anos de prisão ou uma multa de até 50 milhões de wons coreanos (US$ 35 mil ou R$ 203 mil).

Não há estatísticas oficiais sobre quantos tatuadores foram processados, mas o Sindicato da Tatuagem da Coreia do Sul diz que dá suporte legal a pelo menos 50 a cada ano e acredita que há muitos mais casos anualmente – possivelmente centenas – que tendem a acabar em multas.

Apesar das regras, a grande maioria dos tatuadores na Coreia do Sul, como Narr, não são médicos licenciados.

De acordo com uma estimativa aproximada do Ministério da Saúde e Bem-Estar, em 2021, havia cerca de 350 mil tatuadores no país, com a maioria se especializando em maquiagem semipermanente para áreas como sobrancelhas, lábios e linha do cabelo.

Excluídos esses tatuadores semipermanentes, o número cai para algo entre 20 mil e 30 mil, de acordo o Sindicato da Tatuagem.

Nos últimos anos, os tribunais sul-coreanos absolveram vários profissionais não médicos por tatuar, sinalizando uma mudança de atitudes e agora há cada vez mais pedidos de mudança na legislação.

No ano passado, tanto o Partido do Poder Popular (PPP) quanto o principal partido da oposição, o Partido Democrático da Coreia (DPK), apresentaram projetos de lei sobre tatuadores, que visam tornar legal para não médicos fazer tatuagens.

“Muitas vezes penso que o congresso é o último lugar que reflete adequadamente a opinião pública”, diz o representante do DPK, Kang Sun-woo, que apresentou um projeto de lei semelhante em janeiro. Ela acrescenta que apenas 1,4% das pessoas na Coreia do Sul com tatuagens as fizeram com um profissional médico, ressaltando a necessidade de uma reforma legal.

No entanto, a Associação Médica Coreana (KMA) divulgou recentemente uma declaração expressando forte oposição e séria preocupação com as propostas.

A associação afirmou que “a tatuagem não apenas danifica a pele, mas também pode representar outros riscos à saúde, incluindo interferência no diagnóstico de câncer”, acrescentando que “a tatuagem é fundamentalmente um procedimento médico, e sua crescente popularidade não reduz os riscos associados”.

Se a legislação for aprovada, ela deve ser acompanhada por regras claras sobre licenciamento e “regulamentações rígidas para garantir que a tatuagem seja feita de maneira higiênica e segura” para proteger os clientes, diz Lee Kwang-jun, dermatologista e membro da KMA.

Incluindo tratamentos semipermanentes, um quarto das pessoas no país fez tatuagens, de acordo com uma pesquisa de junho de 2021 realizada pela Gallup Korea. Quando os tratamentos semipermanentes são excluídos, o número cai para 5%.

Além de proteger os clientes, as novas leis também protegeriam tatuadores como Narr.

Ela finalmente conseguiu persuadir o cliente que se expôs a ir embora, mas a provação teve um papel em sua decisão de fechar seu estúdio solo alguns meses depois. Agora, ela trabalha em um estúdio compartilhado com vários outros tatuadores.

“Eu me sinto muito mais confortável lá”, diz ela.

‘Desprotegida pela lei’

Uma de suas amigas próximas, Banul, que é tatuadora há 12 anos, também enfrentou desafios.

Em seu terceiro ano de tatuagem, um de seus clientes a denunciou à polícia após uma disputa.

A cliente exigiu 5 milhões de wons coreanos (R$ 20,3 mil) cerca de dois meses após fazer sua tatuagem, alegando que ela havia ficado “borrada” e que queria removê-la.

Banul pediu que sua cliente fornecesse evidências, mas diz que ela nunca o fez, então ela se recusou a entregar qualquer dinheiro.

Alguns dias depois, ela ouviu uma batida na porta de seu estúdio e encontrou a cliente parada ali com um policial.

“Não fui pega em flagrante fazendo tatuagem, então acabei pagando uma multa de 1 milhão de wons (R$ 4 mil)”, diz Banul, reconhecendo que as coisas poderiam ter sido muito piores.

A cliente continuou a enviar mensagens indesejadas a Banul por seis meses depois, deixando-a se sentindo “desprotegida pela lei”.

Opinião pública negativa

Quando se trata de opinião pública, uma pesquisa recente da Hankook Research revelou que mais de 60% dos sul-coreanos têm opiniões negativas em relação às tatuagens e àqueles que as têm.

Ahn Lina, uma ex-tatuadora, descreve-se como uma das primeiras gerações de influenciadoras de tatuagem do país. Com quase 300 tatuagens cobrindo seu corpo do pescoço aos pés, Lina acumulou mais de 260 mil seguidores no Instagram e quase 100 mil no YouTube.

“Recebi tanto ódio”, diz ela. “Em alguns dos piores casos, eu acordava com 1.500 comentários de ódio depois de postar.”

Quando ela compartilhou a notícia do nascimento de sua filha, ela recebeu comentários como: “Uma mãe como você deveria ter feito um aborto” e “Seu leite materno terá gosto de tinta.”

Ela também foi inundada com centenas de mensagens sexualmente explícitas, muitas acompanhadas de fotos de genitais.

O abuso online desempenhou um papel na decisão de Lina de deixar o negócio de tatuagem em 2023. Desde então, ela assumiu empregos de meio período como garçonete, entregadora e modelo.

Mas suas tatuagens ainda atraem críticas. “Quando fui a um balneário público, os clientes idosos me deram tapinhas nas costas e tentaram apagar minhas tatuagens com saliva”, ela diz.

Críticas e estigmas em torno de mulheres com tatuagens são comuns, de acordo com Lee Yu-jin, jornalista do jornal The Hankyoreh na Coreia do Sul.

“Mulheres tatuadas são frequentemente vistas como mais impulsivas, antissociais e sexualmente promíscuas, portanto consideradas impróprias para o casamento”, ela diz.

Yu-jin explora questões de corpo e gênero por meio de seus artigos na Bodyology, onde aborda a percepção pública das tatuagens.

Oportunidades no exterior

As tatuagens se tornaram cada vez mais populares entre os jovens, especialmente as mulheres, na década de 2010 como uma forma de autoexpressão, ela explica, mas isso as colocou em desacordo com as visões conservadoras que percebem as mulheres como “normais” apenas se elas se conformam aos papéis tradicionais.

Em resposta a esses desafios, alguns tatuadores deixaram o país em busca de maior liberdade e reconhecimento.

Gong Greem, que é tatuadora há mais de sete anos, trabalhou fora da Coreia do Sul, na Europa e nos EUA. Este ano, ela planeja se mudar para Londres, onde trabalhou anteriormente e se sente “respeitada como artista”.

“O ambiente de trabalho em Seul pode ser muito limitador para tatuadores”, explica Greem.

“Acho que mais tatuadores que querem expressar melhor sua personalidade e visão artística estão escolhendo ir para o exterior.”

Outros continuam esperançosos de que a nova legalização chegará à Coreia do Sul em breve.

Mas para Narr, as coisas estão indo muito devagar.

Ela engravidou recentemente e agora está pensando em seu futuro. “Quando percebi que estava grávida, literalmente planejei me mudar para outro país para trabalhar porque não quero que as pessoas julguem meu trabalho – e elas vão julgar meu bebê também”, diz ela.

“Não sou legalmente protegida como tatuadora, o que torna este trabalho instável. Estou ficando mais velha e se eu tiver um filho, me preocupo em como explicarei isso a ele ou ela.”

“Acho que a Coreia do Sul precisa mudar suas leis e algumas pessoas precisam mudar suas ideias.”

 

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