Uma história das Rocas

Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.
Manoel de Barros

Finalmente fiz a leitura do livro do jornalista Ciro Pedroza, presenteado pela cunhada Joseane em 2022. A obra conta a origem e as muitas histórias desse bairro tão querido que acolheu meus avós, pais, tios, esposo e primos na infância, juventude e parte da vida adulta.

Eu mesma morei por quase dois anos na Rua Café Filho (entre os anos de 1982 e 1983) e reconheci alguns lugares mencionados pelo autor. Vovó Maria residia na Rua Areia Branca; tia Luzia, na Miramar; tia Lêda, na Edvar Reis (já na Brasília Teimosa) e a prima Rosa vivia na Rua São Jorge, pertinho da Igreja Sagrada Família, mesma rua em que o autor viveu.

O texto do Ciro é ótimo de ler, claro! Jornalistas escrevem muito bem! Ele combinou uma competente retrospectiva histórica ― que resgatou os primórdios do bairro no século XVIII e registrou, inclusive, as marcas deixadas pela 2ª guerra ― com uma análise perspicaz do espaço geográfico (que também é um espaço social). Por último, fez uma narrativa divertida sobre os tipos pitorescos e o cotidiano dos moradores.

As Rocas pertencem à classe trabalhadora. O bairro foi, para os homens e as mulheres que ali construíram suas casas e vidas, como os arrecifes que deram seu nome: um abrigo contra as intempéries, um aconchego para as tristezas que as necessidades causavam. Pescadores, pedreiros, lavadeiras, cozinheiras, estivadores do porto, ferroviários, comerciários da Ribeira, pequenos comerciantes e operários das fabricas de diferentes ramos de negócios, fizeram nascer e crescer o recanto pertinho do oceano Atlântico.

Os becos, vielas, vilas e travessas, como a do “Alto da Castanha”, a do “Releixo”, a de “João das Moças” e a “Travessa das Donzelas” mencionadas são um ótimo exemplo da geografia local. Segundo o autor, dá para se percorrer o bairro inteiro através delas. Lembro muito da Jordanês porque era perpendicular à rua onde eu morava com meus avós, então, sempre passava por ela.

A culinária local, que me fez lembrar do “escaldaréu”, do cuscuz, do doce de caju em passa, das quengas açucaradas de coco e dos polis que vovó tão bem preparava, são uma parte reconfortante da narrativa. Quantas vezes não salivei quando ia visitar minha tia, que morava na Miramar bem em frente à Carne Assada do Lira? Ô, saudade…

Para mim, a proximidade com o mar foi desde sempre a maior dádiva das Rocas. Um presente para os olhos, para o corpo e para o espírito dos que nadam por entre as ondas, boiam nos dias calmos e caminham pela areia macia até o Forte, nos finais de semana que permitem um passeio mais demorado. Essas são memórias preciosas da minha própria infância. Tanto, que retratei esses momentos em crônicas, contos e romances.

Entre os mitos locais, senti falta da lenda do Poço do dentão que falava do tesouro escondido do corsário Jacques Riffault. Talvez por ser uma história do tempo de vovô Genésio, o autor não tenha conhecimento dela. Tratei de recriá-la em um livro de contos lançado em 2018.

A parte mais gostosa da obra é a que traz as pessoas e os espaços conhecidos do bairro. Papai lembrou de alguns, mas, meu esposo mostrou uma memória prodigiosa antecipando quase todos os nomes de lugares e pessoas significativas, como Tia Mundinha, do Jardim Escola Coração da Mamãe, onde ele estudou.

Tenho orgulho de dizer que sou sobrinha de um morador muito conhecido nas Rocas. Até hoje, ninguém a quem perguntei, desconhece o nome de Dão (João), que consertou rádios e televisores por pelo menos 40 anos lá. Mas, meu coração bate mais forte dentro do peito por saber que mamãe foi uma das professoras do projeto criado pelo prefeito Djalma Maranhão: “De pé no chão também se aprende a ler”. Ela era uma recém-formada normalista vinda do Instituto Kennedy quando foi contratada para lecionar na revolucionária experiência.

No final do livro, o autor reserva um espaço e pede que o leitor escreva a sua própria memória do bairro. Confesso que me emocionei porque lembrei imediatamente de vovô, trazendo da padaria Estrela do Mar, o pão carteira que tanto apreciávamos, ou na porta de casa, conversando com seu Mãozinha e com o mestre Cornélio Campina, fundador do grupo Araruna. De vez em quando esse encontro acontecia porque eram velhos conhecidos. Não me dei conta na época, mas, eu testemunhava a amizade de três dos mais antigos moradores, ou, como chamamos hoje, de uma parte da “Velha guarda das Rocas”.

Encontrei com o Ciro no velório de uma prima do meu esposo e disse a ele que ficava insegura de me afirmar uma canguleira devido ao pouco tempo vivido no bairro. Ciro foi generoso, disse que eu tinha esse direito e que minha ancestralidade (avós, pais e tios) possuíam a prerrogativa de me conferi-la. Fiquei feliz.

Do título ao projeto gráfico afirmo: “Uma história das Rocas” é a homenagem mais agradável que esse lugar tão importante da nossa capital já recebeu. Um bairro que só rivaliza em sua riqueza cultural com Mãe Luíza e Ponta Negra merecia uma retrospectiva há tempos. Que bom que foi feita por um morador vocacionado com a arte de contar histórias.

Quando escritores da terra como o Ciro Pedroza e o Homero Homem (natural de Canguaretama) promovem um lugar tão significativo da memória de uma cidade, algo invisível, mas de relevância, se movimenta sem que percebamos. As antigas histórias servem ao saudosismo dos mais velhos, mas, servem principalmente, para que as novas gerações conheçam o passado.

No caso desse ótimo livro, a matrona cheia de histórias, que um dia Palmyra Wanderley chamou de “Sinhá Rocas”, foi celebrada com o respeito, a força e a graça que lhe são características. Obrigada, Ciro. Os canguleiros daqui de casa pediram para agradecer.

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