Ainda estou aqui

por Marcos Aurélio Felipe *

1. Vi o filme duas vezes: a primeira, sozinho, logo que estreou na programação local; a segunda, com a família, incluindo um menino de 11 anos, sua mãe, uma tia e a avó, que não entrava em uma sala de cinema havia quase 50 anos. Da primeira vez, eu vi um filme de Walter Salles: por um lado, mais uma mulher no papel principal, movimentando-se como intérprete de si mesma, pontuando sua jornada entre conquistas e desatinos, como Socorro Nobre (Socorro Nobre, 1996), Dora (Central do Brasil, 1998), Dahlia Williams (Água Negra, 2005) e a personagem de Fernanda Torres em Terra Estrangeira (1995). Por outro, mais uma vez, as lentes de Salles acompanham um personagem da história (como em Krajcberg, o poeta dos vestígios, 1987; Diários de motocicleta, 2004; e Na estrada, 2012) e, de novo, trabalha com a adaptação de outra obra da literatura (como em A grande arte, 1991; Abril despedaçado, 2001; Diários de motocicleta; e Na estrada). Da segunda vez que fui ao cinema ver Ainda estou aqui, vimos juntos um filme sobre o Brasil, de ontem e de hoje, e o diálogo se estendeu para além do filme em si.

2. Ainda estou aqui divide-se entre dois personagens: o ex-deputado federal Rubens Paiva e Eunice Facciolla Paiva, advogada e um dos nomes centrais na defesa dos direitos indígenas no país. A Ditadura Militar atravessa os personagens e situações cotidianas (a blitz, o comboio passando na orla do Leblon, o sequestro do embaixador suíço, famílias deixando o país), a experiência no período autoritário e, por fim, a redemocratização (com o reconhecimento dos mortos e desaparecidos e, especialmente, com a instalação da Comissão Nacional da Verdade). Se, até certo momento, a engrenagem ditatorial não é uma presença frontal, pelo menos até os agentes policiais levarem Rubens de dentro de sua própria casa, o fantasma do regime autoritário permanece nas bordas, como extracampo à espreita, prestes a invadir o cotidiano e a vida daquelas pessoas. E, como sabemos, invade, impõe-se e determina o destino de uma família de classe média brasileira. Se, em um segundo momento, essa violência se torna concreta, é na primeira parte que o campo é o tempo todo assombrado pelo extracampo, tanto histórico quanto cinematográfico (1).

Dentro da história, há uma percepção de controle, acompanhamento e cuidado: viver, trabalhar, projetar um novo e se reunir com os amigos, apesar de tudo. Do lado de cá da quarta parede, ficamos em sobressalto, na iminência e com os sentidos em alerta, pois sabemos qual será o desfecho nos porões do regime militar.

Ser espectador desse filme, no mundo de hoje, não foi fácil: Walter Salles, diferentemente de Quentin Tarantino, em Era uma vez em Hollywood (2019), não alteraria o curso da história. Nesse jogo de regulação do visível, entre o que se mostra e o que se ausenta, Ainda estou aqui opera com a contenção e a exposição calibrada de eventos e sentimentos, quase chegando a excelência nas sequências da prisão. Entretanto, a dimensão da contenção se subsumi no quadro – demasiado – de evidências (capuzes, retratos de identificação, gritos, a performance dos inquisidores, o corredor sendo lavado, a escuridão da cela, a delação buscada, a tortura psicológica). Por sua vez, elimina o efeito indicial na abordagem do horror, que Salles pretende percorrer sem evidenciá-lo. A sequência dos agentes militares na casa dos Paiva talvez seja o ponto alto desse jogo: a presença do regime autoritário se instalando dentro daquela casa, a vigilância discreta e, paulatinamente, cercando todos ali, certa normalidade inicial no vai e vem dos filhos (entre o interior e o exterior da residência, os cômodos e as vistas de Eunice, o excepcional e o ordinário; entre a violência física e psicológica, o campo e o fora de campo). São atos que se desenrolam com a encenação modulando o conflito iminente, os acordos tácitos e controlados entre os sujeitos, a instalação do horror no seio de uma família, a cena entre a insurgência (que recua) e a obediência (que os suprime), a partir de um filme que luta contra ele mesmo o tempo todo, adequando-se entre o que se inscreve em quadro e o que precisa deixar de fora.

3. Ainda estou aqui, por um lado, reluta em ser uma transcrição da obra de Marcelo Rubens Paiva. Desde o início, esquece o filho como agente do discurso, sujeito também de suas próprias memórias (ou autoficção memorialística), que, no filme, permanece apenas como um dos cinco filhos do casal, para centrar o foco em Eunice, que se torna o fio condutor da obra cinematográfica. Por outro lado, no caso de Rubens, mesmo quando ele desaparece e não integra mais o campo fílmico fisicamente, sua ausência não se efetiva completamente, pois sua presença fílmica (não física) é contínua, especialmente porque Salles não consegue ir ao extremo de “sumir” com o personagem como a crueldade dos porões militares foi capaz. Isso explica o excesso de “imagens de arquivo” (diegéticas), a partir de fotografias e fragmentos em super 8, organicamente pertencentes ao campo diegético (a foto feita na praia, as gravações que nascem da câmera de uma das filhas e que, por dois momentos, veremos projetadas).

Ausente, Rubens (o personagem histórico) passa a existir no fora de campo, permanentemente pressionado pelo extracampo e pelo cinema humanista que, entre uma projeção e outra, uma foto e outra, não opta por torná-lo absolutamente ausente. O aparato narrativo mobilizado restitui, no presente, o que a história operou para fazer desaparecer. Talvez por isso Ainda estou aqui não consiga fugir das marcas da história, flertando e, ao mesmo tempo, esquivando-se do filme de época, que, até certo ponto, o persegue, com indícios e objetos despontando na superfície da imagem como uma presença temporal muito forte (os discos, os automóveis, as elipses, a música, Londres, o exílio de Caetano e Gil, a esquerda burguesa, a sequência da blitz e os retratos dos guerrilheiros estampados diante das faces daqueles meninos e meninas ainda adolescentes). Mesmo assim, tem quem veja Ainda estou aqui como um cinema de indícios, que apresenta o horror sem mostrá-lo diretamente, sem se render a certo panfletarismo de esquerda (quando o elogiam) ou sem enunciar sua crueldade de forma direta e denunciar o “mecanismo totalitário” (quando o criticam).

4. É um filme que ensaia acabar em dois momentos, mas Salles recua e recusa a coda que se aproxima, o que permite a Eunice permanecer em quadro com seus filhos em busca de respostas (na primeira) e de viver apesar do trauma (na segunda e terceira partes). A primeira vez que tive a impressão que Ainda estou aqui terminaria foi quando a família deixa o Rio de Janeiro, despede-se daquela casa onde viveu com o esposo/o pai e segue para São Paulo: a casa sendo esvaziada, os cômodos deixados com todas as suas lembranças. É outra sequência que, ao lado do segmento da sorveteria, figura como um dos grandes momentos que potencializa o que não tem mais volta. A casa sendo deixada sem Rubens, sem o pai brincalhão e o companheiro de festas e rodadas com os amigos (que a interpretação de Selton Mello transborda de alegria), como se o filme naquela sequência iniciasse o luto; e o passado, com Eunice e os filhos indo embora, tivesse se tornado uma página virada. No entanto, o filme luta contra ele mesmo o tempo todo e esse fim não se encaixaria na história de Eunice Facciolla Paiva.

Tanto no livro quanto no filme homônimo, Marcelo (o escritor e o personagem) indaga quando cada membro da família aceitou a morte do pai. Ainda estou aqui responde exatamente nessa sequência, espreitando e recusando o fim. E se a montagem de Salles não desce as cortinas nesse segmento, talvez tenha sido porque encerraria uma obra sobre Rubens e não sobre Eunice: sua jornada, seu poder e sua capacidade de reexistir e reinventar-se. Outra sequência que parece chegar ao fim é logo após a elipse de 25 anos, quando a família recebe o atestado de óbito de Rubens Paiva, cujo corpo, tantas vezes enterrado e desenterrado, nunca fora encontrado. Isso ocorre no segmento em que Marcelo está ao lado de Eunice, que, cercada pela mídia, afirma ter finalmente recebido o reconhecimento do Estado de que o marido estava morto. Mas logo em seguida, já em casa, com o álbum de documentos em suas mãos, com os recortes de fotografias, as páginas de jornais, os relatórios e outros documentos anexos: Eunice abre o álbum, passa suas folhas e insere o atestado como o último documento do memorial de Rubens. Fechei os olhos esperando os créditos e a música de Erasmo. Conduzidos por mais uma elipse, o filme avança e Eunice aparece incorporada nos olhos de Fernanda Montenegro.

5. Compreende-se a recusa de Salles em encerrar Ainda estou aqui, pois, a cada momento da História, era necessário não descer as cortinas sem que a Rubens a história abrisse as portas para a memória, a justiça e a verdade. Suponho que as imagens – fictícias – de arquivo dentro do filme, além de buscarem recorrentemente um efeito de presença e resolverem, cenicamente, a ausência do pai-marido, estavam ali postas para não radicalizar a dimensão do vazio. Continuar sem qualquer vestígio daquele homem (fotográfico e fílmico) intensificaria a violência da imagem não preenchida: o que Salles – certamente – não legaria à esposa e/ou aos filhos que sentiam, apesar de, naquele momento, não saberem que ele nunca retornaria. Era pedir demais ao olhar humanista de um diretor que quase sempre coloca o cinema na justa medida de uma contribuição, no campo da elaboração da memória histórica, que o excede; em uma experiência contemporânea do Brasil, que o ultrapassa (4).

6. Rubens Beyrodt Paiva nasceu em Santos, em 26 de dezembro de 1929, no Rio de Janeiro. Em 20 de janeiro de 1971, quando o Brasil chegava ao momento mais violento da Ditadura Militar sob o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, Rubens Paiva foi levado pelos agentes militares e, nos dias seguintes, foi barbaramente torturado, assassinado e teve o corpo enterrado e desenterrado várias vezes por agentes militares. Rubens Paiva foi um engenheiro civil, deputado brasileiro cassado pelo Golpe de 1964 e colaborava com familiares de militantes exilados. Seu corpo nunca apareceu, e seu óbito foi reconhecido pelo Estado apenas, em 1996, já no período da redemocratização. Cinco torturadores foram identificados, dois ainda estão vivos, mas nunca foram responsabilizados pelos crimes que cometeram. Em 12 de fevereiro deste ano, ao analisar o caso de militantes da Guerrilha do Araguaia cujos corpos nunca foram localizados e, portanto, sepultados pelos familiares, o ministro Flávio Dino colocou em xeque a Lei da Anistia. Em seu argumento, o ministro do STF citou o filme de Walter Salles. Campeão de bilheteria, ultrapassando a casa dos 5 milhões de espectadores no Brasil e obtendo sucesso absoluto de bilheteria nos Estados Unidos, Ainda estou aqui teve três indicações ao Oscar – 2025 (melhor filme, melhor filme estrangeiro e melhor atriz), e recebeu o prêmio de melhor atriz dramática no Globo de Ouro (Fernanda Torres) e venceu a categoria de melhor filme no Goya deste ano. Pela visibilidade que ganhou, o filme recolocou o horror autoritário no palco do debate público, a necessidade de uma discussão permanente sobre o estado democrático e de direito e, por consequência, a preservação das liberdades políticas e individuais, da luta por justiça, memória e verdade.

* Marcos Aurélio Felipe é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atua na área das tecnologias no Departamento de Práticas Educacionais e Currículo (DPEC), do Centro de Educação (CE) e desenvolve pesquisas sobre cinematografias indígenas de Abya Yala, seus processos de produção e formação audiovisual. É autor dos livros Ensaios sobre cinema indígena no Brasil & outros espelhos pós-coloniais (Sulina, 2020) e Outras fronteiras do cinema (Sulina, 2024).

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Notas:

  1. Das reflexões de Jean-Louis Comolli sobre as relações campo/extracampo no cinema de Pedro Costa.
  2. Marcos Augusto Gonçalves na Folha de São Paulo em artigo publicado no caderno Ilustríssima, de 23 de janeiro de 2025.
  3. A crítica do Le Monde assinada por Jacques Mandelbaum;
  4. O pesquisador e professor André Brasil (DECOM/UFMG), ao estudar Martírio (2016), fala de um certo cinema que, diante de uma causa, movimenta-se para além do mundo do cinema, ultrapassando, de certa forma, aquilo que é estritamente do seu campo.

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