Carne de Carnaval: a jornada do menino que seguiu o som da flauta e virou músico

O ano era 2001. Laerte Adler tinha apenas 11 anos quando, um dia, enquanto brincava no quintal da avó, na pequena Serra Caiada, na região Agreste do Rio Grande do Norte, ouviu o som doce, melodioso e suave de uma flauta. Na mesma hora, como se tivesse sido encantado, seguiu a trilha de notas ainda desconhecidas que o levou até a rua de trás, onde uma menina, com a mesma idade dele, estudava o instrumento em casa. Esse foi o primeiro passo para que, anos mais tarde, se tornasse músico de formação, embora tenha trocado a flauta pelo trombone.

O instrumento de sopro da família dos metais exige mais fôlego para ser tocado, ainda mais nesse período de carnaval, quando as tradicionais orquestras de frevo chegam a fazer apresentações de sete horas diárias. A maratona, segundo Laerte, começou desde as primeiras prévias, em meados de janeiro.

Durante o carnaval, Laerte chega a tocar sete horas diárias. Foto: Cedida

Até a quarta-feira de cinzas, Laerte calcula que terá feito pelo menos 30 apresentações com o “Frevo do Xico”, grupo criado pelo Chico Bethoven, onde ele toca desde 2012. Para dar conta da jornada intensa dos dias de reinado momesco é preciso fazer uma preparação prévia, estudando para aperfeiçoar a técnica do instrumento, para conseguir fazer todas as tocadas.

Apesar do cansaço, Laerte garante que, quando para de tocar, aproveita para curtir um pouco da folia, porque, parafraseando os Novos Baianos, ele também tem carne de carnaval.

O começo da paixão pela música

Laerte recorda com carinho o começo da sua trajetória musical, iniciada ainda na infância quando ouviu o som daquela flauta invadir o quintal da avó lá em Serra Caiada. Ele diz ter “quase certeza”, com a lembrança um pouco vaga, que a menina que tocava o instrumento se chamava Yasmim.

Ao encontrá-la, quis saber como ela havia aprendido a tocar a flauta. Ficou surpreso quando Yasmim relevou que participava de um projeto de musicalização que havia começado na cidade.

Laerte foi dormir naquela noite lembrando do som da flauta. No outro dia, sem contar a ninguém da sua família, foi à escola onde o maestro João Batista, conhecido como João da Banda, natural de Carnaúba dos Dantas, ministrava o curso de iniciação musical a serviço da Prefeitura de Serra Caiada.

A família não se empolgou com a novidade

Laerte torcou a flauta pela trombone na banda da academia de música do maestro João da Banda. Foto: Cedida

Quando chegou em casa contando a novidade, a reação da família foi de indiferença. “Eles [o pai e a mãe] só deixaram [participar do curso]. Não se empolgaram nem proibiram”, conta.

A apatia dos pais tinha uma explicação. É que ninguém na família, antes dele, tinha ligação com a música. Então, possivelmente acreditavam que a incursão musical dele não passava de empolgação pré-adolescente, como costumam ser as paixões de carnaval.

A paixão, no entanto, vingou. Laerte começou no curso de flauta doce, mas depois, quando surgiu a oportunidade de tocar um dos instrumentos da banda da academia de música do maestro João Batista, optou pelo trombone.

Formação musical

O curso do maestro João da Banda durou nove meses. Depois disso, Laerte nunca mais abandonou o trombone. Em 2006, mudou-se para Natal, onde fez um curso técnico na Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Dois anos depois, entrou na graduação, concluída em 2012.

Da flauta na infância à graduação na Escola de Música da UFRN. Foto: Cedida

Até se tornar bacharel em trombone pela Escola de Música, Laerte vivia apenas de música, mas, devido à instabilidade financeira da profissão, decidiu prestar concurso para técnico administrativo na UFRN. Era uma forma de ter uma renda fixa que lhe garantisse o mínimo de segurança.

O que a música une, nada separa

Laerte conheceu Thaysa, sua companheira, durante uma apresentação no “Buraco da Catita”. Foto: Cedida

Essa, no entanto, não foi a única motivação para fazer o concurso. Ele também já vinha planejando casar com com Thaysa, a namorada que conheceu em 2011, quando fazia uma apresentação no Buraco da Catita, no histórico bairro da Ribeira, onde durante alguns anos, sempre às sextas-feiras, uma galera predominantemente jovem se reunia para curtir a boa música instrumental feita em Natal.

Depois de passar no concurso, veio a estabilidade necessária para os dois trocarem o famoso “sim” no altar, além de fazerem a tradicional promessa de ficarem juntos “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza”, até o fim dos dias.

Desde aquela noite embalada pela melancolia do chorinho na Ribeira, quando foram unidos pela música, Laerte e Thaysa viraram parceiros de vida e de muitos carnavais.

O trombone, o trabalho e a engenharia

Desde então, Laerte passou a se dividir entre a música, o trabalho de técnico administrativo e a nova graduação em engenharia civil, que resolveu fazer quando estava concluindo o bacharelado em trombone.

“Eu também sempre achei interessante a área de engenharia, tinha esse interesse de fazer algum curso. Quando fui escolher o vestibular, fiquei na dúvida entre a música e a engenharia. Na época optei pela música. Depois me deu vontade novamente de fazer a engenharia, aí fiz essa outra graduação”, relatou, confessando que sempre teve um pé na arte e outro nas ciências exatas.

Ele conta que gostou do curso, mas quando começou a trabalhar na área, perdeu o interesse. Resolveu fazer mestrado para seguir na carreira acadêmica, até que veio a pandemia da Covid-19 em 2020, aí engenharia terminou ficando de “stand-by”.

Um novo instrumento: a sanfona

Durante a pandemia, ele aprendeu sozinho a tocar sanfona. Foto: Cedida

Entre 2017 e 2020, quando fazia o mestrado, ele teve que dar um tempo na música, que só retomou com a volta dos eventos presenciais pós-pandemia. Durante esse período de isolamento social, começou a estudar mais um instrumento: a sanfona.

O interesse em aprender o novo instrumento, segundo ele, surgiu um pouco antes da pandemia. Quando o novo coronavírus obrigou pessoas do mundo inteiro a se isolarem, Laerte achou que poderia aproveitar o tempo para estudar o acordeon.

Começou a estudar sozinho em casa, com um livro para iniciantes e a ajuda de vídeos pela internet. A bagagem que já trazia da música, obviamente, facilitou as coisas. Inicialmente, o instrumento era apenas um hobby para Laerte, mas, mais tarde, ele passou a tocar profissionalmente, revezando sempre com o trombone.

Trombonista, sanfoneiro e, agora, mixador

Recentemente, Laerte também fez o curso técnico de processos fonográficos na Escola de Música da UFRN, onde aprendeu a mixar, masterizar e fazer gravações em estúdio, além de atuar na sonorização de eventos.

Nova profissão: mixador. Foto: Cedida

Já na nova área, ele mixou as 12 músicas do álbum “Potiguara Mendonça Nhe’enhasaba”, lançado no final de fevereiro pelo grupo de música indígena potiguar Itamaraka.

O álbum, disponível em todas as plataformas digitais, foi gravado integralmente em tupi, com o acompanhamento musical do violão, maracá, tambo e arremedo. O projeto é uma parceria com o Selo Kaninga da Escola de Música da UFRN, fomentado pelo programa Funarte Retomada Música 2023.

Próximos passos

Dada a vontade inesgotável de aprender coisas novas, é impossível prever o próximo passo de Laerte. O menino que ouviu o som da flauta pela primeira vez no quintal da casa da avó no interior, virou profissional do trombone e aprendeu sozinho a tocar sanfona tem uma trajetória longa ainda pela frente.

Aos 34 anos de idade, ele já traz no currículo a experiência de ter tocado com a Banda Sinfônica de Natal, a Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte e a Big Band Jerimum Jazz da UFRN.

No currículo, Laerte traz a participação em vários grupos de música do RN. Foto: Cedida

Laerte também foi um dos fundadores do “Quarteto Potybonds”, tocou em algumas bandas de forró e em bandas baile. Atualmente, além do “Frevo do Xico”, onde além de trombonista organiza as tocadas com os músicos e atua como maestro da orquestra, ele ainda faz parte dos grupos Perfume de Gardênia e Ribeira Boêmia.

É verdade que todo carnaval tem seu fim, como diz aquela outra canção conhecida lembrada a cada quarta-feira de cinzas, mas o fôlego do nosso trombonista para a música parece nunca acabar.

The post Carne de Carnaval: a jornada do menino que seguiu o som da flauta e virou músico appeared first on Saiba Mais.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.