Desinformação e democracia

No dia 15 de janeiro de 2025, foi divulgado o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial e uma de suas principais constatações, a exemplo de 2024, foi que a desinformação (produção e divulgação de informações falsas com o objetivo de manipular e enganar pessoas) é hoje, no ranking dos principais riscos, uma das maiores ameaças globais, além dos eventos climáticos extremos, a perda de biodiversidade e colapso do ecossistema, escassez de recursos naturais, aumento das tensões geopolíticas (conflitos armados) que estão “impulsionando o cenário de risco global” (O relatório com 104 páginas está disponível em https://reports.weforum.org/docs/WEF_Global_Risks_Report_2025.pdf).

Em uma entrevista feita pela jornalista Julia Motta no Fórum Onze e Meia no dia 24 de janeiro de 2025, Sérgio Amadeu, sociólogo, especialista em redes sociais e inclusão digital e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), analisou a estruturação da desinformação e fake news pela extrema direita e o que chamou de areorganização do fascismo (em livro publicado em 2022, escrito com Renato Rovai (Editora Veneta) Como derrotar o fascismo em eleições e sempre, afirmam que o bolsonarismo é uma das encarnações tropicais do neofascismo que se articulou no país por meio das redes digitais. 

Na entrevista, três anos depois, diz que “estamos lidando com a nova organização do fascismo via desinformação” e que “a estratégia principal da extrema direita é a desinformação, é negar completamente os fatos e a cada momento trabalhar algo que possa mobilizar a atenção das pessoas no sentido de reforçar o senso comum ou traços do senso comum”, edestacou a importância de se ter alternativas, formas eficazes de se organizar para combatê-la.

E um dos aspectos que ressaltou é que “a esquerda e o campo progressista não estão conseguindo trabalhar de forma correta o combate às fake news e que, apesar da população saber que há desinformação, os representantes da extrema direita conseguem suspender os parâmetros da realidade e criar confusão”. 

Nesse sentido, defende que o campo progressista precisa ter uma estratégiamais agressivapara combater a desinformação, como organizar a sociedade civil e “parar de apelar às big techs como Meta, Alphabet, Amazon e outras” porque elas não vão fazer nada que impeça a distribuição de desinformação. Primeiro, porque se beneficiam com a sua monetização, e segundo, porque, a exemplo da extrema direita em outros países, como nos Estados Unidos, confundem (intencionalmente) desinformação com  liberdade de expressão. 

E afirma que, ao invés do governo “ficar botando dinheiro para essas big techs, deveria ter iniciativas no sentido de que mostrassem como é a cadeia da desinformação” e, para isso, destaca o papel importante dos jornalistas (os comprometidos com a verdade e não com a manipulação e mentiras) e, claro, “envolver a sociedade nessa ação”.

O fundamental é o fato de “estamos lidando com a nova organização do fascismo. O fascismo do século XX sempre foi mobilizador, basta ver as imagens de Hitler falando para aquela massa de alemães. O fascismo não é novo, mas o fascismo agora tem uma nova forma de mobilizar que é via redes, engajando a partir da desinformação e reforçando valores. Eles vão fazer isso o tempo todo”. 

E para combatê-lo, tem-se que usar as armas que eles dominam muito bem, as redes para o desmonte de mentiras e desinformação. E cita um de muitos exemplos o que circulou  nas redes sociais, divulgando mentiras sobre a oferta do governo de comida estragada para a população de baixa renda. Uma matéria publicada por Clarissa Pachaeco no O Estado de S.Paulo no dia 23/01/2025 cujo título é Governo não propôs vender alimentos vencidos à população de baixa renda, com base no Estadão  Verifica, constata a mentira e afirma que a ideia foi de associações de supermercados e da indústria de alimentos, não do governo federale ainda que a iniciativa foi rejeitada pela Casa Civil. (https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/governo-quer-vender-alimentos-vencidos-populacao-de-baixa-renda-enganoso/). Na realidade, a proposta era modificar a forma de informar a validade de alimentos não perecíveis, não vender carne estragada. 

Esta é apenas uma das muitas mentiras e desinformação  que circularam na internet e nas redes sociais  e, neste caso, com o objetivo de atacar o governo. No entanto, a propagação de desinformação em defesa do ideário da extrema direita no país é mais ampla, com ataques sistemáticos a Justiça Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal. E é nesse sentido, que se podem compreender os ataques que misturam desinformação com má-fé, ao relatório da Procuradoria-Geral da República (PGR), enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, protocolado (e tornado público) no dia 18 de fevereiro de 2025. 

 O documento, com 272 páginas, aponta o ex-presidente Jair Bolsonaro como o “líder de organização criminosa estruturada para impedir que o resultado das eleições presidenciais de outubro de 2022, com o planejamento de um golpe de Estado, a ser efetivado, com o propósito de garantir a sua permanência no poder” e que teve como “última esperança” os atos de oito de janeiro de 2023 em Brasília, antecedidos pela mobilização de pessoas em frentes aos quartéis do Exército no país, que pediam intervenção militar. 

Desde a publicação do relatório, que denunciou 34 pessoas, entre eles, militares de alta patente, tem sido atacado pela extrema direita, no Congresso Nacional e fora dele, como nas redes sociais, rádios, jornais, sites, blogs, canais de televisão etc., tentando desqualificar o relatório com desinformação, como se ele fosse apenas “narrativas”, sem provas, como se não tivesse existindo uma articulação golpista, incluindo uma minuta de golpe e até um plano (Punhal verde e amarelo) para matar o presidente da República, o vice e o ministro Alexandre de Moraes que foram algumas das muitas provas encontradas pela Polícia Federal no curso das investigações e que constam no extenso (884 páginas) e bem fundamentado relatório sobre a tentativa de golpe (instaurado em 26 de junho de 2023 e concluído em 21 de novembro de 2024,  indiciando 40 pessoas). 

Enfim, não foi apenas resultado das delações do ex-ajudante de ordens do então presidente da República, o tenente-coronel Mauro Cid que teria sido “forçado” a fazer isso, desconsiderando os respectivos relatórios.

Em relação ao da Polícia Federal, encaminhado ao ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, inicia afirmando que “No contexto da presente investigação apurou-se a constituição de uma organização criminosa, com seus integrantes atuando, mediante divisão de tarefas, com o fim de obtenção de vantagem consistente em tentar manter o então Presidente da República JAIR BOLSONARO no poder, a partir da consumação de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito, restringindo o exercício do Poder Judiciário e impedindo a posse do então presidente da República eleito”. 

No caso do relatório da PGR, há algumas diferenças, embora tenha usado como base o relatório da Polícia Federal, o qual, segundo o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet “O extenso relatório produzido é de louvável minúcia; nele há a exata indicação de fontes, provas e indícios altiloquentes; nessas evidências baseiam-se também a denúncia”. 

Segundo o relatório da PGR “O arcabouço probatório colhido indica que o grupo investigado, liderado por Jair Messias Bolsonaro, à época presidente da República, criou, desenvolveu e disseminou a narrativa falsa da existência de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação do País desde o ano de 2019, com o objetivo de sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral”.

E que a narrativa tinha dois objetivos: “Primeiro, não ser interpretada como um possível ato casuístico em caso de derrota eleitoral e, segundo e mais relevante, ser utilizada como fundamento para os atos que se sucederam após a derrota do então candidato Jair Bolsonaro no pleito de 2022”. 

E com base nas investigações e provas refere-se a quatro crimes atribuídos ao ex-presidente e demais denunciados (11 a menos do que constam no relatório da PF e incluiu mais quatro não citados), organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Outro aspecto relevante, como parte da estratégia da desinformação, é o de que o ministro Alexandre de Moraes não poderia fazer parte do julgamento e se julgar impedido por ser “uma potencial vítima” dos ataques sistemáticos que sofreu (e que ainda continuam) e ameaças de morte e, portanto, não poderia ser vítima, juiz, investigador do inquérito. 

É uma falácia. Como disse o jurista Pedro Serrano, em entrevista a Leandro Demori, no dia 6 de janeiro de 2025, esse argumento não faz sentido, em se tratando da defesa de uma organização criminosa. E cita um levantamento de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no qual consta que mais de cem juízes contam com proteção policial porque foram ameaçados por organizações criminosas que eles investigavam e julgavam, e que nenhum foi julgado impedido porque “não existe a figura do impedimento provocado”, ou seja, o réu não tem direito de escolher quem vai julgá-lo, não tem direito a manipular a jurisdição para impedir o juiz que acha que está atuando contra ele porque está aplicando a lei em função de crimes que foram cometidos.

E não tem dúvidas de que se tratava de uma tentativa de golpe, com “uma organização criminosa, núcleos especializados no ambiente da sociedade civil, no ambiente do parlamento, no ambiente do governo, no ambiente das forças armadas, da polícia, ou seja, uma organização criminosa com especialidades e que atuou pra efetivamente tentar dar um golpe de Estado”.

No dia 13 de dezembro de 2024, o plenário do STF rejeitou um recurso do ex-presidente Jair Bolsonaro e manteve por maioria dos votos (exceção foi do ministro André Mendonça)  o ministro Alexandre de Moraes como relator do processo em que ele é investigado por tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito e assim como diz o documento do STF, “prevaleceu o entendimento de que o crime de tentativa de golpe de Estado afeta toda a coletividade, e não uma vítima individualizada” (https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-rejeita-impedimento-do-ministro-alexandre-de-moraes-em-investigacoes-contra-ex-presidente-jair-bolsonaro/).

No entanto, em mais uma tentativa de impedir que integrantes do STF participem do julgamento da denúncia do Procuradoria-Geral da República sobre a tentativa de golpe de Estado, os advogados do ex-presidenete Jair Bolsonaro entraram, no dia 25 de fevereiro de 2025, com um pedido para o afastamento dos ministros (integrantes da 1ª. turma) Flávio Dino e Cristiano Zanin. O argumento é que eles já entraram com queixa-crime contra o ex-presidente. No caso do Flávio Dino, em 2021, quando era governador do Maranhão por calúnia, injúria e difamação e Zanin quando atuou na defesa de Lula e advogado na campanha eleitoral de 2022. Não vão com seguir.

Na citada entrevista,o jurista Pedro Serrano cita o artigo 252 do Código de Processo Penal sobre casos de impedimento de juízes, que para ele não se aplica em relação ao ministro Alexandre de Moraes, porque não se pode impedir um juiz que é ameaçado pelo crime organizado em razão do exercício de sua função. E cita um exemplo o próprio ministro que foi ameaçado em um aeroporto na Europa, por transeuntes (brasileiros) e o ministro Dias Tofolli foi designado para ser relator porque “nesse caso, é particular, uma razão privada. Mas, em relação ao inquérito da tentativa de golpe, não. Ele foi atacado porque era o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que comandava as eleições, e também na condição de ministro do STF incumbido de decidir nas investigações sobre a organização criminosa golpista”.

E que se o ministro fosse impedido, todos os juízes que forem ameaçados por organizações criminosas  teriam de se julgarem impedidos. Cabe a essas organizações o poder escolher quem vai julgar? E, no caso específico, de uma organização criminosa que queria acabar “com o direito de todos, da democracia, de forma violenta, desumana e cruel, matando gente”. (A entrevista  de Pedro Serrano está disponível em https://www.ebc.com.br/imprensa/2025/dr-com-demori-da-tv-brasil-recebe-o-advogado-e-escritor-pedro-serrano).

Em relação às medidas de combate à desinformação, uma das iniciativas importantes foi à criação em agosto de 2021, do Programa de Combate à Desinformação e além de seminários, palestras etc., teve como um dos seus resultados duas publicações relevantes sobre o tema: o livro (e-book): Desinformação, o mal do século. Distorções, inverdades, fake news: a democracia ameaçada (STF/Editora da Universidade de Brasília, 2023), uma coletânea com 16 artigos e 31 autores (disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/campanha/anexo/combate/ebook_desinformacao_o_mal_do_seculo.pdf) e o volume II, O futuro da democracia. Inteligência artificial e direitos fundamentais, publicado em 2024, com 336 páginas e disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/campanha/anexo/combate/ebookdesinformacao_VOL2.pdf.).

Outra importante iniciativa de combate à desinformação e defesa da democracia foi à inauguração, em 12 de março de 2024, pelo então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ministro Alexandre de Moraes, do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE) que, como diz o documento, “reunirá esforços de diferentes instituições no combate à desinformação e atuar de forma coordenada no enfrentamento dos discursos de ódio, discriminatórios e antidemocráticos no âmbito eleitoral”.

E entre suas funções, também a de coordenar a realização de cursos, seminários e estudos para a promoção de educação em cidadania, democracia, Justiça Eleitoral, direitos digitais, assim como o eleitoral e organizar campanhas publicitárias e educativas. (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Marco/presidente-do-tse-inaugura-centro-integrado-de-enfrentamento-a-desinformacao-e-defesa-da-democracia-nesta-terca-12).

É fato que a desinformação traz graves consequências para a democracia. Em relação às eleições, em 2020, a Fundação Getulio Vargas (RJ), através da Diretoria de Análise de Políticas Públicas, publicou os resultados de uma pesquisa sobre Desinformação online e eleições no Brasil, coordenada por Marco Aurélio Ruedger e Amaro Graci, intitulada A circulação de links sobre a desconfiança no sistema eleitoral brasileiro no Facebook e Youtube (2014-2020), foi “resultado de um esforço na realização de uma análise histórica de como a circulação de conteúdos sobre suposta fraudes nas urnas e manipulação eleitoral no Brasil nas plataformas de mídias sociais, comportou-se temporal e discursivamente”.

A constatação foi a de que postagens em ambas plataformas – que não deve ter sido diferente nos anos subsequentes – “validam a afirmação de que as narrativas de desconfiança no sistema eleitoral estavam associadas a um maior engajamento e recorrência em ambientes digitais. Dessa maneira, foi possível observar uma ampla circulação de conteúdos perigosos, hiperpartidarizados e fake news no corpus examinado, que sugerem padrões de polarização, intolerância e desinformação na história recente do país”.

A desinformação, não apenas em relação às eleições, mas para a democracia de uma maneira geral, são difundidas nas redes sociais e nesse sentido tem a participação fundamental das big techs. Na matéria A atuação das Big Techs e a regulamentação das redes sociais publicada no ICL Notícias no dia 25/02/2025,  afirma que “A influência das Big Techs sobre a democracia é inegável. A falta de regulação das redes sociais permite a disseminação de fake news, a manipulação da opinião pública e a concentração de poder nas mãos de poucas (gigantes) empresas. Porém, é necessário proteger a democracia e implementar regulações que garantam o mínimo de transparência e responsabilidade das plataformas digitais”. 

Como afirmou Sergio Amadeu em sua entrevista, relacionando desinformação com o fascismo, deve haver uma articulação maior entre os defensores da democracia na rede, porque a extrema direita está muito bem articulada nela e vai continuar se aprimorando e cada vez mais profissionalizando as ações porque “eles têm muitos marqueteiros trabalhando e recebendo muito dinheiro para fazer o trabalho sujo da desinformação”. 

No livro Como derrotar o fascismo em eleições e sempre, ele defende uma mobilização organizada e constante e que é “urgente criar campanhas pelo resgate do país e pela derrota da besta fascista”.

A filósofa Márcia Tiburi afirmou, com razão, que o fascismo hoje é turbinado pelas tecnologias digitais e é nesse espaço, também, que o fascismo deve ser enfrentado (e derrotado). Não basta apenas fazer isso em relação às eleições ou a defesa da lisura das urnas: é necessário viabilizar e fortalecer modelos, como disse Sergio Amadeu, que mantenham as ameaças sob controle em todos os momentos.

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