‘Os ditadores de hoje manipulam a democracia para cercear a liberdade’

Ao contrário do que acontecia no passado, os líderes populistas de hoje utilizam o próprio sistema democrático para chegar ao poder e, uma vez lá, enfraquecer a liberdade, o pluralismo, a diversidade, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. O remédio para isso são instituições fortes, como explica o presidente da Associação Internacional de Ciência Política, o professor espanhol Pablo Oñate, nesta entrevista exclusiva ao A TARDE.Oñate esteve em Salvador na semana passada, onde falou sobre populismo no mundo globalizado durante o 14º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado no campus de São Lázaro da Ufba. Na entrevista, Oñate discute o papel das plataformas digitais, o crescimento da extrema direita e das ditaduras de esquerda. “A manipulação da democracia é comum a todos os tipos de populismo, de esquerda e de direita”, explica. Confira mais na entrevista a seguir.Este ano vamos ter mais de 70 eleições no mundo. E o populismo, como o senhor costuma explicar, estará presente na maioria delas. Quais são os riscos atuais do populismo para o mundo?As consequências dessa nova onda de populismo que vemos no mundo, que chamamos de quarta onda de populismo, é que elas são enganosas. Pode parecer que, ao fim, a vontade do povo será escutada. Que, ao fim, você vai integrar as populações marginalizadas. Que, ao fim, você vai acabar com desigualdades sociais. O problema é que rapidamente vamos observar que, em nome dessa emancipação de boa parte população, esses líderes populistas limitam as liberdades, o pluralismo, os meios de comunicação de massa, a diversidade cultural. Portanto, nos deparamos com tudo que enfraquece as democracias. Nos deparamos com democracias menos garantistas das liberdades. Nós sabemos que as democracias contemporâneas têm graves problemas. Falo de altíssimas taxas de desigualdades e da apatia política, porque a maior parte da população está farta de seus líderes políticos que não a incluí, que não leva em conta a sua opinião. Os sistemas e líderes populistas são, em grande medida, limitadores da liberdade das suas populações.No que os líderes populistas de hoje diferem dos populistas do passado?Diferentemente dos ditadores do século 20, em nossos dias temos os ‘spin dictators’ (‘ditadores marqueteiros’, numa tradução livre para o português). São ditadores que manipulam a democracia. Aparentemente são democratas, mas acabam cerceando a liberdade, o pluralismo, a diversidade, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. Acabam não tanto reprimindo violentamente a oposição, mas através da manipulação das redes sociais, dos meios de comunicação controlados, impedem que haja uma verdadeira oposição é um verdadeiro pluralismo. Esses novos ditadores, esses novos ‘spin dictators’, utilizam os meios aparentemente democráticos, em muitas ocasiões através de eleições livres e abertas, para manipular a democracia. E muito rapidamente pervertem de alguma maneira esse caráter democrático das eleições. E, dessa forma, ampliam o poder dos governos, dos executivos, dos presidentes frente a legislativos que poderiam controlá-los. Acabam enfraquecendo também a competência do Poder Judiciário, expulsando magistrados das mais altas cortes e ampliando o número para ter maioria e dominá-las. Enfraquecem também as universidades, as asfixiando economicamente quando elas são críticas do poder político. Portanto, enfraquece toda a democracia.Como o senhor vê o papel das redes sociais e das plataformas digitais no fortalecimento desses discursos populistas?Poderíamos dizer que a internet tem um caráter democrático. Poderíamos dizer que o Facebook, o Google, o X (ex-Twitter) têm um caráter democrático. O problema é que a canalização do discurso político, através desses meios, é enormemente limitante. Os algoritmos limitam muito a comunicação. Sabemos  que a comunicação política acaba criando autênticos círculos fechados, guetos de comunicação. Porque, com essas plataformas e os algoritmos, as pessoas acabam só escutando coisas parecidas com aquilo que elas já pensam. Não lêem notícias alternativas. Não lhes permitem contrastar. Não há um verdadeiro debate aberto de idéias, mas a reiteração de discursos que, em muitas ocasiões, provocam um aumento da polarização e da radicalização do discurso político. Essas plataformas efetivamente poderiam ter um caráter libertador, proporcionando que a informação circule de forma muito mais rápida. Mas, ao mesmo tempo, podem ser extremamente perigosas a partir do momento que limitam muito o verdadeiro debate político. E, em muitas ocasiões, as redes sociais são o espaço por onde se reproduzem os mesmos discursos. Abrem um colóquio, mas são personagens que pensam mais ou menos de forma igual. Assim, há uma reiteração do discurso que elimina o pensamento alternativo. Ele passa a ser simplesmente um pensamento unidimensional, como explicou Herbert  Marcuse em sua obra “O Homem unidimensional”. Nos deparamos com uma unidimensionalidade da sociedade que não é muito saudável para a democracia. Por isso, precisamos regular essa plataforma no sentido de que elas têm uma responsabilidade. Não podem alegar que não têm responsabilidade  pelas mensagens que transmitem. Precisamos regulá-las para que não publiquem aquilo que seja desrespeitoso com a liberdade ou que impliquem em discursos de ódio. Por outro lado, os meios de comunicação tradicionais, a imprensa, poderiam se incluir nesse debate oferecendo alternativas distintas. Mas, em nossos dias, muitos meios de comunicação têm uma orientação política determinada.A gente assiste hoje em todo mundo o crescimento da extrema direita. O que explica esse fenômeno?Cada país tem suas especificidades, mas o que observamos é que o aumento do apoio a propostas populistas da direita radical está vinculado normalmente a uma guerra cultural e a transformação de valores das sociedades democraticamente ordenadas. Está vinculado à repulsa dos valores que sofreram mudanças significativas nos anos 60, 70 e 80. Valores da esquerda progressista, da emancipação da mulher, da liberdade sexual. É uma reação à ascensão desses valores emancipadores, que se chocam com os valores muito tradicionais e excludentes. Em segundo lugar, esse apoio à direita radical está embasado nas consequências da globalização, que piorou a qualidade de vida de boa parte da população. Eles são conhecidos tradicionalmente como os “perdedores da globalização”. Falo de parte da população que se sente prejudicada pela liberdade do comércio mundial, pela internacionalização de determinadas indústrias ou pela deterioração das condições de vida. Esses trabalhadores viram sua hora de trabalho perder valor pela concorrência dos  produtos da china ou de outras partes do mundo. Eles de repente se sentiram inseguros e perdidos. Estão num mundo pelo qual não estavam preparados. E por isso se sentem ameaçados e têm medo. Por isso, votam na direita radical. Esses são os dois motivos mais importantes.E quais são os riscos desta ascensão da extrema direita?O risco maior é a negação do estrangeiro, do desconhecido. O populismo em geral se volta contra a imigração com o argumento que os estrangeiros estão a roubar os nossos postos de trabalho, os nossos benefícios sociais, limitando as escolhas dos nossos filhos. Pensamos que os outros que vêm de fora são uma ameaça. Na Espanha mesmo, os imigrantes são entre 11% e 12% da população. A imensa maioria desses imigrantes compra produtos espanhóis, paga impostos, portanto são pessoas que estão contribuindo necessariamente com a economia  nacional espanhola. Não obstante, os partidos da direita radical rechaçam essas populações, as qualificam como uma ameaça e as querem excluir do sistema. O populismo tem essa característica. Afirma a suposta bondade de uma entidade chamada “povo” –  não sabemos o que é isso, não tem contornos claros – e rechaça tudo que é uma ameaça a esse suposto povo. Portanto, rechaça a diversidade e multiculturalidade.A gente está falando da extrema direita, mas também há o populismo da esquerda, vide o que está acontecendo na Venezuela. O que difere um do outro?O populismo da extrema direita é mais excludente. É um populismo que entende ser preciso excluir uma parte da população. Entende que o povo são os nacionais e os estrangeiros são uma ameaça. O populismo de esquerda, a princípio quer fazer crer que defende os excluídos, os marginalizados, os que não têm oportunidades na vida. O problema é que acaba utilizando os mesmos métodos. Enfraquece o sistema democrático liberal, o pluralismo e as liberdades. E tira da população a  liberdade de decidir politicamente. Não respeita os resultados das eleições democráticas ou as manipula previamente. Eu creio que o problema da Venezuela hoje não está somente nas enormes dúvidas que recaem sobre o resultado das eleições. O resultado anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral aponta a vitória do candidato Maduro. Mas isso é um  grande problema porque antes da eleição, durante a campanha, já havia grandes restrições para a oposição. Não houve uma competição em igualdade de condições entre a oposição e o candidato oficial. Isso é comum a todos os tipos de populismo, de esquerda e de direita.No caso da Venezuela, como o senhor vê o papel de líderes moderados de esquerda, como o presidente Lula, para garantir o respeito ao sistema democrático?Acredito que o presidente Lula é muito diferente de líderes de esquerda como (Nicolás) Maduro. O presidente Lula é líder de uma esquerda mais tradicional. Uma esquerda dos trabalhadores, reivindicativa de melhores condições laborais para os trabalhadores e para a maior parte da população. É uma posição muito diferente da posição de líderes como Maduro. Por isso, esses líderes e partidos da esquerda tradicional, que respeitam os princípios democráticos, têm uma missão muito importante:  forçar esses líderes populistas da esquerda a respeitarem os procedimentos democráticos. E, no caso concreto da Venezuela, forçar que Conselho Nacional Eleitoral apresente as atas de votação que são elementos fundamentais em quaisquer procedimentos de auditoria democrática. Que se coloquem as atas à disposição dos meios de comunicação tradicionais e dos representantes dos partidos.No Brasil a gente viu a situação que o senhor descreveu no início da entrevista. O ex-presidente Jair Bolsonaro se elegeu de forma democrática, mas passou a questionar o nosso sistema eleitoral. Como o senhor viu a posição das instituições brasileiras nessa questão?As instituições foram fundamentais, não há dúvida. O que acontece é que os populistas em muitas ocasiões podem vencer as instituições. Por isso que as instituições têm uma enorme importância. As próprias universidades e os acadêmicos são de enorme importância, assim como são os meios de comunicação sérios. Não obstante, as instituições em muitas ocasiões – se os regimes populistas, sejam de direita ou de esquerda, duram demasiado tempo – ficam enfraquecidas. Temos exemplos disso na Venezuela ou na Hungria, com orientações ideológicas muito distintas, mas com dois líderes populistas. Tanto na Venezuela como na Hungria as cortes supremas não são livres para tomar suas próprias decisões. Estão largamente influenciadas por essas correntes populistas que não lhes permitem cumprir corretamente as suas funções de defesa do Estado de direito. Quando as instituições estão submetidas demasiado tempo a um regime de caráter populista acabam limitadas em sua capacidade de reação frente a esses regimes.Falamos aqui de eleições em todo mundo, mas tem uma que é muito importante para todo planeta que é a dos Estados Unidos. Quais são os riscos do retorno de um populista como Donald Trump ao poder?Sem dúvida eu creio que corremos um grande risco, apesar de estamos vendo a candidata democrata Kamala Harris  melhorar as suas expectativas de voto. Mas ainda segue muito equilibrada com Trump, por isso creio que seguimos correndo um grande risco. Tenho repetido que os segundos mandatos de líderes populistas são muito mais perigosos. Acredito que Trump acabará atuando como um líder perigosamente populista desde o primeiro momento. E que ele será muito mais eficaz do que no primeiro mandato no sentido de enfraquecer as instituições democráticas. Esse é um grande perigo que creio que corremos com os segundos mandatos de líderes populistas: eles serão muito mais eficazes no enfraquecimento das instituições democráticas e, portanto, em terminar com as liberdades.Diante de tudo isso que a gente conversou, o senhor tem uma visão mais otimista ou pessimista do futuro?Sempre procuro ter uma visão otimista. Se a gente pensar em como era a vida há 50 anos, vamos constatar que nossas sociedades são muito melhores. As pessoas vivem mais, sofrem menos. Há mais possibilidade de saúde e bem-estar material. Veja, nós estamos aqui conversando porque o mundo está mais globalizado e as pessoas interconectadas. Não obstante, estamos longe de ter um mundo perfeito. Cada sociedade tem seus momentos de perigo. Assim como nossas sociedades têm muitas coisas positivas nesses dias, também enfrentam  muitos perigos que precisamos estar atentos. Há 50 anos não havia redes sociais. E, como falei, as redes sociais têm um lado muito positivo, mas tem outro bastante perigoso.  Devemos  estar conscientes dos seus perigos para estar alerta sobre eles e saber como enfrentá-los. Mas, olhando para trás, devemos ser otimistas.Raio-XAtual presidente da Associação Internacional de Ciência Política, Pablo Oñate é também professor titular de Ciência Política na Universidade de Valência. Ele é autor e editor de vários livros e artigos acadêmicos sobre eleições, elites políticas, populismo, entre outros temas. Foi também presidente da Confederação Europeia de Associações de Ciência Política (2014 e 2016). Oñate trabalhou para diversas organizações internacionais, atuando em vários países da América Central e Latina, Bósnia-Herzegovina e Mianmar, lidando com democratização, reforma institucional e sistemas eleitorais.
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