PrEP ainda é mais oferecida a homens brancos e escolarizados, diz médica

Especialista confirmada no sétimo Encontro Nacional de Projetos Apoiados pelo Fundo Positivo, a médica e epidemiologista Inês Dourado acredita que gestores públicos precisam pensar em modelos de cuidado e tratamento para HIV/Aids que cheguem a pessoas que mais precisam. O evento, que será realizado de hoje à quinta-feira, 29, em Salvador, vai debater sobre os avanços das diretrizes de prevenção contra a infecção pelo vírus. Professora da Universidade Federal da Bahia e da Brown University, nos Estados Unidos, Inês é referência em pesquisas sobre HIV. Nesta entrevista, ela fala sobre os desafios de ampliar o acesso à Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), um dos principais métodos de prevenção ao vírus. “É necessário criar estratégias para aumentar a cobertura em várias populações”, pontua. Inês reforça que o uso correto da PrEP pode reduzir em mais de 90% o risco de infecção pelo HIV e defende o combate ao estigma como peça-chave na resposta à epidemia.Quais são as principais estratégias de prevenção ao HIV disponíveis atualmente?A principal é espalhar informação de qualidade. Informação é prevenção. Outras opções são os preservativos masculino e feminino e a testagem oportuna do HIV. É ela que vai garantir se a pessoa tem ou não o vírus. É importante mobilizar as populações que mais precisam para que elas façam o teste. Na verdade, toda a população deveria, pelo menos uma vez por ano, fazer um teste de HIV. Para as chamadas populações chave, os que estão em maior risco, convêm testar a cada seis meses. Com o tratamento correto e a continuidade dele, as pessoas infectadas chegam à carga viral indetectável, ou seja, não transmitem o vírus. Temos, também, a Profilaxia Pós-Exposição, a PEP. Se alguém se expôs e acha que pode estar em risco de HIV, deve procurar um serviço de saúde e usar esses antirretrovirais por 28 dias. Além da PEP, o carro-chefe da prevenção é a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que existe em várias modalidades e compostos: de forma oral, injetável, em forma de anéis para as mulheres. As opções de prevenção são muitas e a ideia é combinar quem precisa conversar sobre o assunto com as populações que procuram os serviços de saúde para entender o que melhor se adequa a vida de cada sujeito.

Leia Também:

“As pessoas estão casadas com o celular, não com o outro”, diz Fabrício Carpinejar

“A igreja manda orar”: pesquisadora critica silêncio religioso diante da violência doméstica

Pílula do dia seguinte, Rivotril e Tadalafila: os perigos ocultos da automedicação

Como que a senhora avalia os avanços na implementação da PrEP no Brasil?O programa PrEP no SUS (Sistema Único de Saúde) é uma política pública de saúde que foi implementada no fim de dezembro de 2017. A partir de 2022, a cobertura do programa aumentou 72%, de acordo com o painel do Ministério da Saúde. Vários outros municípios do país e grupos populacionais foram alcançados. A PrEP agora é recomendada para todos os adultos e adolescentes a partir de 15 anos que são sexualmente ativos e estão sob risco aumentado de infecção. A partir do programa, foi simplificado o segmento laboratorial da PrEP. Hoje, a quantidade de exames laboratoriais é bem menor, mais focada. Houve a inclusão de enfermeiros na prescrição desta profilaxia, ou seja, não são apenas médicos que podem prescrever, mas também profissionais da enfermagem. Por outro lado, é possível observar que a PrEP ainda está, em sua grande maioria, sendo dispensada para homens gays e outros homens que fazem sexo com homens – o que representa 81%. Outros grupos que têm acesso são homens brancos, 55%, e homens gays brancos, na faixa etária de 30 a 39 anos e com escolaridade elevada. 

Para os jovens e adolescentes na faixa de 18 a 25 anos, que apresentam aumento expressivo na infecção, o acesso à PrEP é muito baixo: entre os que têm menos de 18 anos, a cobertura é de apenas 0,2%. A PrEP é uma estratégia importantíssima no país. Sua eficácia na prevenção do HIV chega a mais de 90% quando usado corretamente. Mas, é necessário criar estratégias para aumentar a cobertura em várias outras populações

Quais são os desafios para ampliar o acesso à PrEP entre adolescentes e populações vulneráveis?Os grupos em áreas mais pobres do país são justamente os que mais precisam. O uso dessa tecnologia está muito ligado a questões sociocomportamentais e estruturais. Por exemplo, para adolescentes, deve-se garantir o acesso ao serviço de saúde, a orientações e consultas, sem necessidade de presença ou autorização de pais ou responsáveis. Os adolescentes têm direito à privacidade. Isso está garantido na lei do SUS. É necessário combater o estigma e a discriminação ao uso da PrEP e, inclusive, pensar em modelos voltados para esses jovens que possam aumentar a criação de demanda. Os jovens precisam conhecer a PrEP e ter acesso a uma linguagem voltada para eles. Inclusive, é importante envolver ativamente adolescentes das populações da diversidade sexual e de gênero nas medidas de prevenção e saúde. Eles podem ser treinados como agentes de prevenção, fortalecendo, assim, o senso de protagonismo das populações que mais precisam de prevenção.Quais são os principais desafios enfrentados pela Bahia na implementação de estratégias de prevenção?

A médica Inês Dourado

|  Foto: Reprodução

A Bahia é um estado com muitas desigualdades sociais. Isso impacta a resposta a muitas enfermidades e a muitas questões de saúde, como é o caso do HIV. Porém, na área da saúde, nós temos uma imensa compreensão sobre esse vírus. Há 40 anos ele é estudado, e existem medidas de prevenção e cuidados que não justificam situações como as que ainda vemos em algumas regiões do país – inclusive aqui na Bahia – onde pessoas continuam chegando tardiamente para o reconhecimento da sua infecção. Isso impacta tanto na hospitalização quanto no risco de morte. Por um lado, temos essa situação de desigualdade. Mas, por outro, é necessário que os gestores públicos pensem em modelos de prevenção, cuidado e tratamento que cheguem aos que mais precisam. Ou seja, pessoas envolvidas em sexo comercial, pessoas que usam drogas, população da diversidade sexual e de gênero – incluindo adolescentes e jovens – e pessoas privadas de liberdade. É necessário trabalhar com políticas públicas intersetoriais. Temos dados de um estudo que conduzimos sobre os determinantes sociais da Aids, que mostram que a extrema pobreza, a baixa escolaridade e questões de raça e racismo estão associadas ao aumento da incidência, mortalidade e letalidade pela doença. Mostramos também o impacto da alta cobertura municipal do Programa Bolsa Família na redução da incidência, hospitalização e mortalidade por Aids. Veja como essas políticas intersetoriais são muito importantes.O sétimo Encontro Nacional de Projetos Apoiados pelo Fundo Positivo, em Salvador, é uma oportunidade para debater sobre esses assuntos…Sim, sem dúvidas. É fundamental. Essas são estratégias que podem ser pensadas dentro de um modelo de cuidado, assistência e prevenção bem estruturado na resposta ao HIV aqui no estado da Bahia. E a PrEP deve ser parte de um pacote abrangente de serviços para os jovens.

Adolescentes que precisam de prevenção geralmente necessitam também de outros serviços. Carecem de apoio para situações de discriminação, violência e também para questões de saúde mental. Os adolescentes são dinâmicos e fluidos, e nós devemos continuamente adaptar o contexto e respeitar as escolhas dessas pessoas

Com o avanço das pesquisas e a introdução de novas tecnologias, como a senhora enxerga o futuro da prevenção ao HIV no Brasil?Existe um mundo muito amplo dessas novas tecnologias de longa duração. Além dos injetáveis, já existem várias pesquisas sobre comprimidos mensais, em que a pessoa tomaria apenas uma drágea por mês. Essas mesmas pesquisas indicam, inclusive, a possibilidade de uma injeção anual. Todas essas inovações tecnológicas estão em franco desenvolvimento. A questão é que os custos dessas tecnologias de longa duração ainda são muito elevados. Este é um debate mundial: Como os laboratórios produtores podem negociar e transferir ciência e tecnologia para a produção de genéricos em diversos países, além de reduzir os custos, para que os governos possam adquirir esses medicamentos. Existe um futuro muito promissor, mas é fundamental que a sociedade civil esteja bem organizada e trabalhando junto com as instituições de saúde para pressionar e demandar que esses laboratórios produtores tenham uma linha de proteção voltada às populações. Com tecnologias tão eficazes, é essencial garantir o acesso para essas populações, e, assim, podermos pensar em um mundo livre do HIV.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.