Projeto de universitários cria cueca absorvente e leva inclusão a população trans 

Nos últimos anos um termo ganhou notoriedade nos debates e em ações sociais: pobreza menstrual, que se manifesta na falta de materiais de higiene para se usar durante esse período, além da carência de informações, tabus e preconceitos relacionados ao tema. 

Neste cenário, diversos movimentos surgem e vem ganhando força, focando principalmente em quem está em situação de vulnerabilidade social, como por exemplo na população encarcerada ou em situação de rua. Recentemente, um direito foi conquistado: o Programa Dignidade Menstrual, que permite que pessoas de baixa renda acessem absorventes nas farmácias populares. 

Visando contribuir para erradicar a pobreza menstrual e levar informação sobre o tema, uma projeto de estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF), ganha destaque: O Projeto Neutron. A iniciativa tem um diferencial: foca em pessoas transgênero que menstruam, que compreende os homens trans e parte da população não-binária. Os estudantes e professores envolvidos, buscam através desse movimento, contribuir para o fim da pobreza menstrual relacionada à falta de produtos inclusivos para essa comunidade, levando ao mercado alternativas neutras, acessíveis financeiramente e sustentáveis. 

Equipe da Neutron no Evento Nacional Enactus Brasil (ENEB), em São Paulo, julho de 2024

Segundo os estudantes engajados na iniciativa, os produtos menstruais existentes no mercado hoje em dia são vinculados com uma linguagem predominantemente feminina e sendo assim, comercializados para esse público alvo exclusivamente. 

O fato da menstruação ser relacionada, ainda hoje em dia, apenas às mulheres cisgênero (ou seja, as mulheres que foram designadas ao nascimento como tal), é um dos fatores que cria constrangimento, desconforto e sofrimento psíquico em pessoas trans durante o período menstrual e assim, a intensificação da disforia de gênero. Uma vez que o ato de menstruar está relacionado a um gênero com o qual a pessoa não se identifica, ela pode negar fortemente esse processo natural de seu corpo e pode assim, evitar procurar produtos de higiene menstrual, por não se sentir incluída na narrativa predominante.

A falta de inclusão de transgêneros dentro da pauta da menstruação, as invisibiliza enquanto pessoas que menstruam e isso pode levar à intensificação da pobreza menstrual, uma vez que elas não buscam ou têm acesso adequado aos recursos necessários para lidar com a menstruação de forma digna e segura. 

Nicolly Field, 22, designer instrucional, Belo Horizonte MG, e membro do projeto, diz que é senso comum dentro da sociedade que a menstruação seja algo apenas feminino. Isso se vê pelos comerciais sempre com mulheres cis, pelas embalagens sempre com uma frase clichê de empoderamento e pelos absorventes trazendo tons de rosa ou de roxo.

A falta de produtos específicos para pessoas trans, ou mesmo de uma representação que as contemple, cria uma barreira adicional no acesso a esses recursos, que já é difícil para muitas mulheres cisgênero. Dessa forma, a ausência de inclusão de pessoas trans no discurso sobre menstruação contribui para a marginalização ainda maior dessa população, agravando a pobreza menstrual e aumentando o risco de problemas de saúde relacionados à falta de higiene adequada durante o ciclo menstrual.

Ainda segundo os estudantes envolvidos no projeto, as poucas alternativas aos absorventes descartáveis existentes não são acessíveis financeiramente e grande parte da comunidade trans está em vulnerabilidade social, pois enfrenta sérios desafios na empregabilidade e educação formal. A ideia é tornar a cueca absorvente um produtivo inclusive financeiramente e socialmente falando.

O Projeto Neutron também se preocupa com a poluição causada pelos absorventes convencionais: uma só pessoa pode utilizar até 15 mil absorventes descartáveis ao longo de sua vida e assim, acumular cerca de 200 quilos de resíduos que não podem ser reciclados, segundo o Instituto Akatu, que produz pesquisas sobre sustentabilidade e consumo consciente. Além disso, os absorventes íntimos convencionais, por serem feitos 90% de plástico, podem causar irritação e alergias em quem os usa.

A ideia surgiu em 2021, através da iniciativa da equipe que idealizou o projeto no Pontapé Empreendedor, programa do Instituto Semear, que se dividia em 3 blocos de execução: Inspiração, Ideação e Implementação. Por meio dos blocos mencionados, foi possível chegar ao protótipo inicial de uma cueca absorvente. Também foi possível confeccionar este protótipo como um MVP (Mínimo Produto Viável), e testá-lo com a comunidade. 

O projeto Neutron também teve apoio do Enactus UFF VR, para se inscrever no Prêmio Inspirando Cuidado 2024, que impulsiona projetos focados em Saúde e Bem-Estar (ODS 3). O edital serviu então como segundo pontapé para o projeto e a iniciativa foi uma das 6 selecionadas para concorrer à premiação e receber não só a bolsa-auxílio de R$2000, como também mentoria e capacitação. 

Em cinco meses, foi possível finalizar duas versões iniciais para teste de um short absorvente, com auxílio de uma professora de moda inclusiva Ana Luiza Garritano e uma Designer de Moda, Mayara Peixoto, e executar assim uma campanha que coletou o interesse de mais de 95 pessoas transgênero em testar a primeira versão do Short e/ou se tornarem voluntárias no projeto. Nesse período, iniciou-se também uma parceria com o Programa Rio Sem LGBTIfobia, que auxiliará o projeto na entrega de shorts absorventes para o público alvo. Em julho do ano passado, o projeto foi vencedor do Prêmio Inspirando Cuidado 2024 e divulgado em mais de 15 canais de mídia.

Dentro da UFF, a Neutron é percebida como um projeto inovador e essencial, que preenche uma lacuna importante na pauta da saúde e dos direitos de pessoas transgênero. Os estudantes recebem bastante suporte dos professores, e outros estudantes interessados em contribuir, além de espaço nos veículos de comunicação da universidade para divulgarmos cada vez mais o projeto.

Nicolly Field afirma que o projeto é um elo entre mulheres cis e homens cis aliados da causa e também conta com a participação da comunidade trans. O engajamento de pessoas cis, tanto dentro quanto fora da UFF, tem sido crucial para a legitimação e expansão do projeto, mostrando que a causa ressoa além da comunidade diretamente afetada, gerando empatia e ação em uma esfera mais ampla.

Ela comenta que quando é falado da proposta do projeto para pessoas que não são tão conectadas com a causa LGBTQIA+, é muito comum que ouçam: “nossa, nunca tinha pensado nisso e nessas pessoas”. Eles entendem como uma reação positiva de abertura ao pensamento crítico, visto que a partir daí, cria-se uma visibilidade maior dessa comunidade e o sentimento de que é necessário refletir e fazer algo para gerar uma mudança. Uma vez que geram o conhecimento da importância urgente desse tema, o público geral tem embarcado na ideia.

A Neutron está impactando positivamente a comunidade transmasculina, levantando debates sobre menstruação de várias maneiras. Primeiramente, trazendo visibilidade para o fato de que homens trans e pessoas não-binárias também menstruam, algo que muitas vezes é ignorado ou invisibilizado nos discursos tradicionais sobre menstruação. Ao fazer isso, estão ajudando a criar um senso de pertencimento e auto identificação para essas pessoas, mostrando que elas também fazem parte dessa conversa e que suas experiências são válidas e importantes.

Além disso, estão impactando diretamente as pessoas trans que estão testando os produtos, as que estão participando dos testes de usuário. Essa interação tem sido crucial para criar uma conexão mais positiva com a menstruação, algo que muitas vezes é associado a desconforto e disforia. Ao oferecer produtos que foram pensados para atender às necessidades específicas deles, estão ajudando a transformar a experiência da menstruação em algo menos estigmatizante e mais acolhedor.

O ponto fundamental é que tanto o produto quanto a marca são agênero, não sendo direcionados exclusivamente ao público feminino. Isso por si só já quebra estereótipos e preconceitos, promovendo um debate mais inclusivo e representativo. Essa abordagem reflete o compromisso em criar um espaço onde todas as pessoas que menstruam, independentemente de gênero, se sintam contempladas e respeitadas. Por meio dessas ações, estão não apenas atendendo a uma necessidade prática, mas também contribuindo para um debate mais inclusivo sobre menstruação, que reconhece e valoriza a diversidade de experiências dentro da comunidade transmasculina.

Reunião no Centro de Cidadania LGBTQI+ de Volta Redonda, que integra o programa Rio Sem Lgbtifobia, do estado do Rio de Janeiro

Maria Eduarda Scramin, 18, graduanda em Direito na UFF, Volta Redonda RJ e membro do projeto, conta sobre os planos para o futuro da marca: “Nós temos como objetivo de estabelecer nossa atuação em quatro cidades, consolidando nossa parceria com a Superintendência de Políticas LGBTQI+ para a produção e doação de nossos shorts absorventes à comunidade LGBTQI+. Além disso, planejamos estruturar a produção de nossos shorts e expandir nosso alcance nas mídias por meio de publicações de conscientização, com o intuito de aumentar a visibilidade da pauta transgênero. Pretendemos também fomentar discussões sobre a pobreza menstrual e como a sociedade hoje em dia não reconhece pessoas transmasculinas e não binárias como pessoas que menstruam.”

No que diz respeito ao impacto ambiental, a meta futura é evitar o descarte de mais de 576 kg de absorventes de plástico no meio ambiente, ao tornar nossos shorts absorventes mais acessíveis à comunidade, oferecendo uma alternativa mais sustentável e confortável para todas as pessoas que menstruam. Além disso, há a intenção de transformar o projeto em um negócio social, dedicado a vendas e doações de shorts absorventes, com o propósito de promover mais impacto positivo tanto na comunidade quanto no meio ambiente, assegurando a sustentabilidade, conforto e acessibilidade dos produtos.

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