Como cinéfilo que sou, recebi com alegria a notícia que o novo filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar (e seu primeiro em língua inglesa), “The room next door” (algo como “O quarto ao lado”) venceu o Festival de Cinema de Veneza, um dos maiores e mais prestigiados do mundo. Que por sinal teve intensa e honrosa participação brasileira com o filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles Júnior, com Fernanda Torres e Selton Mello, na mostra competitiva, e Kléber Mendonça Filho (de “Aquarius” e “Bacurau”) como um dos jurados.
A satisfação em saber da vitória de um meus diretores preferidos aumentou ao descobrir a temática do filme: proximidade da morte e eutanásia. No longa, Martha e sua amiga Ingrid (Tilda Swinton e Julianne Moore), uma ex-correspondente de guerra e escritora de livros de sucesso, se reencontram depois de muitos anos devido à doença da primeira. Martha tem câncer incurável em estágio três e quer acabar com ele. Ela pediu ajuda a outros amigos, que disseram que não conseguiriam lidar com isso. Ingrid, porém, decide ficar com ela no quarto ao lado. Uma escolha dolorosa, mas necessária e difícil.
Registrando que em muitos países, como os EUA, onde se passa grande parte do filme, a eutanásia (morte assistida diante do desejo de quem sofre com doença incurável) é proibida. É o tema de um dos meus filmes preferidos, o impactante “Mar adentro”, do espanhol Alejandro Amenábar, que narra a história real de Ramón Sampedro, que ainda jovem ficou tetraplégico após bater a cabeça em uma pedra, no mar, se torna escritor ainda assim e passa anos lutando pelo direito de suicidar, no que enfrenta sua família, a igreja e o Estado, até que realiza um plano para , por conta própria e com a ajuda de amigos, morrer de uma maneira rápida que não fira a lei.
Defendo com unhas e dentes que cada pessoa tem o direito de decidir quando partir desta vida e que tipos de sofrimento não está mais disposta a suportar. Sem interferência alheia, nem de família, muito menos ainda do Estado e de qualquer entidade religiosa. Dito isso, e que esse texto não é exatamente sobre eutanásia, acabei lendo uma entrevista de Almodóvar na qual uma frase-definição do seu filme me impressionou: ‘Trata-se de uma mulher agonizando em um mundo agonizante”.
Uma afirmação que se encaixa em outra obsessão temática minha: a dualidade (ou complementação?) de sofrimentos e felicidades pessoas em relação a felicidades e sofrimentos coletivos. O assunto dá pano para a manga e foi abordado em diversos livros e filmes. Hemingway em seu “Adeus às armas” mostra o jovem casal, ele soldado americano, ela enfermeira polonesa, no meio da Primeira Guerra Mundial, tentando, nas palavras do escritor, “uma paz em separado”. Yuri e Lara vivem uma intensa história de amor enquanto em volta deles a Rússia explode na revolução socialista. Por outro lado, John Reed em “Dez dias que abalaram o mundo” e compositores como Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui e Victor Jara defendiam a felicidade como uma conquista coletiva que enfrentasse o opressor e garantisse a justiça social (que traria justamente essa felicidade coletiva para que daí surgisse a individual).
Mas é inegável a simbiose entre vida individual e vida coletiva, ainda que se deseje somente um desses dois mundos. No caso da protagonista do filme de Almodóvar, ela percebe a vida indo embora em um momento delicado do mundo (que também agoniza, como percebe e mostra o cineasta): massacres quase diários de palestinos na Faixa de Gaza, imigrantes sendo alvo de violência em países europeus, extrema-direita ganhando mais espaços na Europa e Trump com chances de voltar a ser presidente dos EUA. Neste 2024 a impressão que temos é que o mundo de maneira geral está se esfarelando em vários aspectos, independente de como individualmente estejamos.
Conversando com uma amiga que há pouco passou uns meses no interior da França e em cidades da Alemanha, ela brincou comigo: “Se você for à Europa hoje, Cefas, não é a mesma que você viu”, se referindo a viagens que fiz em 2006 e 2013. Recordo que em 1995 o cineasta alemão Wim Wenders lançou um filme que amo, “O céu de Lisboa”, na qual o protagonista, o engenheiro de som Philip, dirige de carro de Berlim até a capital portuguesa e celebra uma Europa sem fronteiras e sem preconceitos culturais. Ano passado o mesmo Wenders lançou “Dias perfeitos”, que se passa não na Europa, mas no Japão, na qual o protagonista desenvolve um estilo de vida particular e como o personagem de Hemingway, busca sua paz em separado.
Anos atrás fomos surpreendidos e impactados pela pandemia do Covid e o necessário confinamento, de maneira que cada um de nós teve de viver individualmente (para o bem e para o mal) seus conflitos e soluções enquanto um problema coletivo nos afetava a todos, globalmente. Fala-se de outras possíveis pandemias que possam vir por aí. Tanto nessas situações como em caso de ascensão da extrema-direita, como vivemos no Brasil quatro anos de desgoverno Bolsonaro em plena pandemia, somos golpeados pelo fato que nossa felicidade depende de nós mesmo (e das escolhas que fazemos) mas também do coletivo, seja a eleição de um parlamento e um governante ou um vírus misterioso que nos tira o ar. Nestes dois casos, em relação à nossa vida pessoal, como diz a canção, a dor da gente não sai no jornal.
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