‘Minha mãe era tudo’: feminicídios deixaram 231 crianças órfãs em três anos no RS


Reportagem da RBS TV ouviu crianças e adolescentes órfãos dos feminicídios no estado. Lei que prevê pensão não foi regulamentada e famílias enfrentam desafios que vão além do luto. Vagner e as irmãs, órfãos de Letícia, assassinada em 2019
Reprodução/RBS TV
Vítimas colaterais da violência contra a mulher, o número de órfãos de feminicídios chega a 231 crianças e adolescentes nos últimos três anos no Rio Grande do Sul. Os dados constam no Mapa dos Feminicídios da Polícia Civil, trabalho realizado pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam).
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No período, entre 2022 a 2024, 265 mulheres foram assassinadas no estado em crimes classificados como feminicídio. Mais de 200 delas eram mães. A consequência: 456 filhos ficaram órfãos — ao menos 231 deles ainda crianças ou adolescentes.
Um caso que exemplifica isso é o de Vagner Ribeiro, que tinha 20 anos quando a mãe, Letícia, foi morta a facadas pelo namorado, em Viamão, em 2019. Sem tempo para o luto, tornou-se responsável pelas duas irmãs mais novas, então com 11 e 13 anos. “Ela era nossa mãe e nosso pai. Que que eu vou fazer?”, relembra Vagner. “Eu comecei a caminhar sem ter luz.”
Histórias como essa se multiplicam. Seis anos separam o feminicídio da mãe de Vagner do caso de Juliana Jansen Ribeiro, assassinada em abril de 2025. No feriadão que iniciou na Sexta-feira Santa e terminou no dia de Tiradentes, ao menos 9 mulheres foram mortas devido à condição de gênero no estado, segundo a Polícia.
O assassinato de Juliana ocorreu Camaquã. O suspeito é o então companheiro dela, Adegildo Boeira Duarte, 69 anos, que está preso. Ele, segundo a família, fazia ameaças constantes, controlava a vida da companheira e se recusava a ajudar financeiramente. A defesa dele preferiu não se manifestar.
A irmã de Juliana, Shaiane, ficou com a guarda de seis filhos dela e relata que Juliana já temia pela vida.
“Ela dizia: ‘Meus filhos vão ficar com quem?’. Prometi no caixão que vou cuidar deles como se fossem meus”, disse.
Além dos filhos que já cria, ela teve de abrir espaço — e coração — para mais seis. “Somos oito dentro de casa. Perdi minha casa, meu espaço, minha rotina. Mas eles são parte de mim agora, diz Shaiane”
‘Mãe não quer deixar os filhos’
Os números mostram a dimensão do problema, mas não dão conta de revelar o impacto afetivo e social que ele provoca. “A mãe não quer deixar os filhos. Ela nunca ensinou a gente a viver sem ela”, diz Vagner.
Hoje, sete anos depois do feminicídio da mãe, Vagner acompanha de perto a reconstrução das irmãs. “Elas estão tocando a vida. Quando a gente perde alguém, sente que perdeu tudo. Mas dá pra continuar.”
A dor do luto costuma vir acompanhada de desafios concretos e perguntas objetivos: quem vai cuidar das crianças? Onde vão morar? De que forma será possível sustentar essa nova família?
Em 59 dos 265 feminicídios registrados no estado, os pais também morreram — na maioria dos casos, por suicídio logo após o crime. Nessas situações, as crianças perdem pai e mãe ao mesmo tempo.
Mesmo diante da gravidade, o Brasil ainda não oferece suporte estruturado para esses órfãos. Uma lei federal sancionada em 2023 garante o pagamento de uma pensão de um salário mínimo a filhos menores de 18 anos cujas mães foram assassinadas. Mas, na prática, a norma ainda não saiu do papel, pois a lei não foi regulamentada.
No Rio Grande do Sul, nenhuma criança recebeu o benefício até hoje. A Defensoria Pública da União tem ingressado com ações na Justiça para obter o benefício. Há decisões favoráveis no Pernambuco e no Paraná.
“É um direito previsto, mas não regulamentado”, explica a defensora pública federal Patrícia Bettin Chaves. “A demora do estado não pode impedir o reconhecimento do direito ao menor.”
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), autora da lei, diz que o projeto nasceu ao ouvir uma avó que, após o assassinato da filha, teve de assumir os netos sem nenhum recurso. “Muitas vezes, essas crianças vão para abrigos porque os familiares não têm como cuidar. O estado precisa garantir o básico.”
Trauma contínuo, diz psiquiatra
Para a psiquiatra forense Lisieux Telles, da UFRGS, o trauma enfrentado por esses órfãos é profundo e contínuo. “O feminicídio afeta a criança de forma devastadora. Não só pelo luto, mas pela forma como esse luto acontece: com violência, medo e abandono.”
Segundo a Polícia Civil, parte das mulheres assassinadas estava grávida ou havia acabado de dar à luz — o que coloca seus filhos em situação ainda mais vulnerável. “É preciso que se olhe para isso com urgência”, afirma a delegada Cristiane Ramos, que atuou por três anos na Divisão de Proteção à Mulher.
Mesmo sem apoio do estado, famílias como a de Vagner e Shaiane seguem adiante, unidas pela memória das mulheres que perderam. “A dor nunca vai embora. Mas ela pode virar força”, diz Vagner.
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