Marcelo Gomes quer sonhar, mas não consegue. A partir de uma aflição pessoal ao perder a capacidade do sonho – ou de lembrar deles – durante os primeiros meses da pandemia de covid-19, o cineasta pernambucano faz disso uma investigação sensível em Criaturas da Mente, documentário já em cartaz nos cinemas.Ele vai ao encontro do neurocientista Sidarta Ribeiro, um dos maiores especialistas no assunto no Brasil e no mundo, para ajudá-lo a desvelar os mistérios do sonho e do inconsciente humano de modo, inicialmente, cientificista, ainda que partindo das questões pessoais do diretor.Mas a perspectiva plural e compreensiva de Sidarta dá o tom de um documentário que extrapola a explicação racional da experiência onírica do ser humano.O cineasta conversou com A TARDE para falar sobre o processo de criação do filme: “Durante a pandemia, a gente teve muito tempo de estar com a gente mesmo. Refletir sobre nós e sobre nosso interior. Isso foi fundamental. Tinha gente que não parava de sonhar, muitos não conseguiam dormir, tinha gente que dormia demais e outros que só tinham pesadelo”.Marcelo conta que, nesse momento, começou a ter muitas conversas com Letícia Simões, corroteirista do filme junto com ele – ela que também é cineasta, baiana, mas radicada em Pernambuco. Falavam muito sobre Sidarta e do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, fundada pelo cientista. O encontro entre eles passa a ser o fio condutor do documentário.A partir da visão ampla e humanista de Sidarta, Criaturas da Mente mostra-se um filme muito poético na sua abordagem de algo tão fugaz como o sonho. “A gente não queria fazer um filme científico clássico. Todo meu cinema é muito pessoal, humano, afetivo, que quer tocar o coração das pessoas”, revelou o diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus (2004), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) e Paloma (2021). “Então essa era a grande questão: como investigar algo como o sonho, mas do ponto de vista científico, sem ser racional, cerebral, frio”?A resposta está na interação entre o homem do cinema, cuja matéria-prima são as imagens, e o homem da ciência, cuja matéria-prima é o corpo biológico e a natureza. Mas ambos muito abertos e interessados no trabalho e na investigação um do outro como forma de ampliar a experiência humana.Ancestralidade e políticaMarcelo contou também que, desde o início, queria inserir elementos políticos no filme. “Durante a pandemia, a gente vivia aquele governo terrível, fascistoide, que perseguia muito a ciência e o cinema. Talvez as duas áreas mais afetadas por aquele governo, mais atacadas”, explicou o cineasta.Com isso, o filme centraliza a importância da manutenção dessas duas áreas da atuação humana, fazendo ver que elas não estão tão separadas assim. “Esse documentário quer dizer também que o cinema e a ciência estão mais vivos do que nunca, nós resistimos àquele governo”, ponderou Marcelo.Apesar dos grafismos que invadem as cenas e da fluidez narrativa do documentário, em boa parte ele se constitui de um rede de informações e ideias sobre o significado, as potências e os mistérios do ato de sonhar. Mas aos poucos a linha de raciocínio de Sidarta passa a buscar correlações e chaves de entendimento nas religiões de matriz afro-brasileira, no pensamento dos povos originários e até mesmo em atividades lúdicas, mas ancestrais, como a capoeira.Há importantes contribuições das ialorixás Mãe Beth de Oxum e Mãe Lu e do escritor indígena Ailton Krenak, o que ajuda a ampliar uma cosmovisão que não é mais sobre o sonho em si, mas sobre o próprio indivíduo enquanto ser que pensa, sente e sonha em um mundo cada vez mais racional e menos disposto a enveredar pelos meandros do inconsciente humano.“O Brasil é um país que tem raízes indígenas e africanas fundamentais para nossa formação e que foram por muitos e muitos séculos relegados. A gente ainda não sabe a importância do legado dessas duas ciências, desses dois conhecimentos ancestrais, e a gente queria trazer isso para o nosso cinema”, defendeu o cineasta, vendo nisso também uma posição política assumida pelo filme.Ampliando percepçõesO longa, portanto, envereda por caminhos pouco usuais, mas gratificantes, à medida que faz não apenas o cineasta, mas o próprio espectador se reconectar com sua capacidade de sonhar e entender a importância disso. “O nosso inconsciente, que é maior que o nosso pequeno consciente, é fundamental para qualquer pessoa, especialmente para nós, artistas, que trabalhamos com intuição e criação. E eu estava fechando portas a isso”, conta Marcelo.Ao mesmo tempo, tanto o cineasta quando o cientista se colocam à disposição do tema a partir das suas vivências pessoais e emoções próprias, inclusive servindo de cobaia para os próprios experimentos que envolvem o uso de substâncias entorpecentes pouco comuns na investigação científica.Por um lado, Sidarta se deixa filmar durante uma sessão de indução de sono, ligado a um aparelho que monitora as atividades cerebrais, após usar uma dose controlada de jurema, substância natural de uma árvore do Nordeste brasileiro usada para induzir um estado de transe. Enquanto isso, Marcelo resolve passar por uma experiência transcendental com o uso de ayahuasca, outra planta nativa que possui psicoativos semelhantes.São ambas experiências de expansão da consciência que ampliam as possibilidades de contato com o eu interior e com as inquietações profundas que cada um carrega. Mais do que tudo, Criaturas da Mente ajuda a ampliar a visão cientificista do ato de sonhar a partir de pontos de investigação muito incomuns, provenientes não apenas do entendimento amplo do cientista, mas também das operações narrativas e poéticas do cineasta.“Criaturas da Mente” / Dir.: Marcelo Gomes / Com: Sidarta Ribeiro, Mãe Beth de Oxum, Ailton Krenak, Mãe Lu, Dráulio Barros de Araújo e Marcelo Leite / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
Criaturas da Mente: filme une cinema e ciência contra tempos sombrios
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