Um coquetel de anticorpos foi eficaz na neutralização dos efeitos do envenenamento da picada de 19 cobras consideradas como as mais letais pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Isso pode levar a um potencial soro antiofídico universal, algo vantajoso para um contexto global no qual mais de 100 mil mortes anuais são provocadas por acidentes ofídicos.
O coquetel, composto de dois anticorpos e uma molécula de pequeno porte, é derivado de células do sistema imune de Tim Friede, um influenciador americano que se autopicou 856 vezes com algumas das cobras mais venenosas do mundo e criou imunidade ao veneno.
É a primeira vez que um composto produzido a partir de anticorpos humanos gera resposta contra o veneno de serpentes. A maioria dos soros produzidos são derivados de anticorpos de cavalos ou outros animais domesticados.
Até o momento, o produto, criado por cientistas da empresa de biotecnologia Centivax e do centro Aaron Diamond de Pesquisa em Aids da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, foi testado apenas em ratos em laboratórios e contra venenos considerados neurotóxicos. Os achados foram publicados na revista Cell, na sexta-feira (2).
Ao longo de quase 18 anos, Friede filmou a si mesmo sendo picado por 16 espécies de serpentes com venenos considerados letais, como cobras do gênero Naja, mambas-negras, cascáveis, víboras e cobras-corais. O seu corpo gerou anticorpos contra algumas das principais toxinas incluídas no veneno desses répteis.
Cientistas solicitaram, então, uma amostra do sangue de Friede para pesquisa, e conseguiram isolar dois anticorpos e uma molécula que têm uma resposta eficaz na neutralização do veneno.
“Algumas das toxinas [componentes] presentes no veneno de serpentes são altamente conservadas, por isso os anticorpos e a molécula pequena que identificamos apresentaram uma alta reatividade [resposta imune] no estudo”, afirma Peter Kwong, professor de doenças infecciosas e bioquímica na Universidade de Columbia e autor sênior do estudo.
A descoberta é potencialmente inovadora por dois motivos: primeiro, não há hoje, no mundo, nenhum soro ou remédio contra veneno de cobra produzido a partir de anticorpos humanos, um fato que poderia reduzir bastante os riscos de reação alérgica; segundo, o coquetel pode ser usado potencialmente para neutralizar o veneno de diferentes espécies venenosas, mesmo quando não se sabe o tipo de cobra que causou o acidente.
“Os soros atuais são feitos a partir de anticorpos de ovelha ou cavalo, que podem causar sérios efeitos colaterais, incluindo risco de choque anafilático”, afirma Jacob Glanville, diretor-executivo da Centivax e primeiro autor do artigo.
No estudo, o coquetel foi injetado em ratos dez minutos após estes serem picados por cobras Naja, mambas, kraits (tipo de corais asiáticas) e taipans, que são elapídeos australianos. As quatro cobras pertencem à família Elapidae, que inclui mais de 300 espécies distribuídas em 70 gêneros, todas venenosas. No Brasil, os elapídeos são representados pelas cobras-corais.
Estas serpentes possuem um veneno neurotóxico, isto é, com ação no sistema nervoso central da presa, além de propriedades de ação no local da picada (como edemas) e generalizadas (como hemorragias).
Segundo Kwong, o coquetel produzido a partir dos anticorpos de Friede pareceu funcionar somente contra os elapídeos, e não para víboras, mesmo ele tendo sido picado por algumas cobras da família Viperidae (que incluem as cascáveis, jararacas e víboras).
“Portanto, pode ser eficaz em lugares como a Austrália, onde existem principalmente elapídeos, mas precisaríamos fazer um coquetel amplo que seja eficaz contra víboras para ter um produto que funcione no Brasil, por exemplo [onde a maioria dos acidentes ocorre por este grupo].”
Em todo o mundo, existem cerca de 600 espécies de cobras peçonhentas. Dados estimam cerca de 4,5 milhões de acidentes todo ano, com entre 80 mil e 138 mil mortes decorrentes dos ataques, segundo a OMS. O maior índice de acidentes ocorre em populações rurais e em países em desenvolvimento, onde não só o encontro com esses animais é maior devido à proximidade das cidades com áreas naturais, mas também pelas condições precárias de assistência à saúde.
O acesso ao soro também é desigual, o que levou o órgão de saúde a classificar os acidentes ofídicos como uma doença tropical negligenciada, em 2017. Uma das vantagens do produto fabricado pela Centivax é também ser disponibilizado em pó, reduzindo o custo e a necessidade de redes de frio para armazenamento.
Agora, o grupo pretende iniciar um estudo com modelos animais maiores, como cães, em parceria com veterinários na Austrália. “Os cães possuem um tamanho corporal semelhante ao dos humanos, e a dose que recebem ao serem picados na natureza é a mesma que um humano teria quando picado”, diz Glanville. Eles também têm um estudo em andamento com viperídeos, utilizando o mesmo princípio ativo.
Se tudo der certo, os próximos passos da pesquisa incluem a fabricação e a aplicação do produto em um estudo clínico (com humanos) em cerca de dois anos, e até quatro anos para concluir essa etapa. “Isso dependerá do financiamento e, provavelmente, filantropia. Este é um produto que pode ser lucrativo a longo prazo, mas necessita agora de parcerias com farmacêuticas ou de ações filantrópicas alinhadas à missão de apoiar o estudo clínico.”