“A informação equivocada está tomando a frente nas redes sociais”, diz médico

Atuando no tripé ensino, pesquisa e prática nos consultórios, o médico baiano Raymundo Paraná é uma das referências nacionais na área da hepatologia. Com mais de 40 anos de experiência, é ferrenho defensor de uma formação médica que alie o domínio da técnica com um olhar humanitário para o paciente, mediado pela ética. Para o especialista, a medicina atual reflete a má formação oferecida nos cursos que proliferam no Brasil. A crise no setor, reflete, é amplificada pela atuação irresponsável de muitos profissionais nas redes sociais, que “vendem” tratamentos sem comprovação científica. Nesta entrevista, Paraná fala do avanço do tratamento na hepatologia, mas também das dificuldade de acesso aos tratamentos – e conclama os governantes do país a tomarem ações mais enérgicas para regulação dos cursos e a atuação de médicos nas redes sociais. Confira.No mês passado se comemorou o Dia Mundial do Fígado. Como andamos cuidando desse órgão importante para nosso corpo?Cuidamos muito mal. O Brasil tem uma escassez absoluta de hepatologistas e de serviços de hepatologia, sobretudo do SUS. Isso se deve a um modelo de formação equivocado e a alta complexidade que se exige para pacientes com doença de fígado, além da infraestrutura para diagnóstico, o que não é a realidade da maioria dos centros privados e públicos no país. Então há uma discrepância entre o número de pacientes que morrem de cirrose e o número de pacientes que estão em lista de transplante, o que significa que boa parte dos pacientes está longe de ter um acompanhamento com um especialista e de encontrar um fluxo para hierarquizar o seu atendimento.Quais são os principais avanços na área?A área da hepatologia teve avanços fantásticos nos últimos 30 anos, sobretudo nos últimos 20 anos. A chegada da biologia molecular no laboratório modificou as doenças virais e permitiu que tivéssemos uma série de medicamentos antivirais que não tínhamos acesso antes e que a gente pudesse curar a Hepatite C e controlar a Hepatite B. Os métodos de imagem permitiram o diagnóstico precoce das doenças hepáticas e também dos tumores do fígado. Os exames laboratoriais de genética também permitem hoje o diagnóstico de diversas doenças genéticas que não eram conhecidas, como por exemplo as colestases familiares, a hemocromatose e a doença de Wilson, entre outras. E por fim, há um espetacular ganho de possibilidades terapêuticas para doenças hepáticas, o que não acontecia antes.A cirurgia robótica tem sido apontada como um grande avanço na área médica? Como está a utilização na Bahia?Não há dúvida que a cirurgia robótica é um grande avanço, reduz a inflamação do ato operatório, torna a cirurgia menos invasiva, com menos efeitos adversos, riscos e morbidades. Não é indicada universalmente, mas se bem indicada tem vantagens. O problema é o custo muito alto, poucos hospitais públicos têm e nos hospitais privados não há ainda cobertura total dos planos e seguros de saúde. Também temos que tomar cuidado com a super indicação, há situações em que a cirurgia laparoscópica ou mesmo a cirurgia convencional têm resultados próximos da cirurgia robótica.Nunca tivemos tanto acesso à informação sobre saúde, mas também nunca foi tão difícil distinguir a boa informação da ruim. As redes sociais mais ajudam ou atrapalham?A questão do acesso à informação de saúde é um problema, porque nós nunca tivemos tanto acesso, mas nunca tivemos tanta informação de má qualidade. As redes sociais, através de profissionais que a utilizam com fim comercial para vender tratamentos, suplementos, hormônios, negando a ciência, colocando em risco os pacientes de forma despudorada, se tornou normal. É revoltante receber no consultório pacientes adoecidos por essas práticas inidôneas das redes sociais. Então, se a informação chega mais fácil, a informação equivocada, descabida, está tomando a frente nas redes sociais. É um modelo de informação subversivo, absurdo, e que adoece pessoas para enriquecer outras pessoas. É preciso punição urgente e é preciso regular as redes sociais para que indivíduos que se coloquem numa posição de profissional de saúde não a utilizem em benefício próprio ou em malefício de outras pessoas.E como tirar proveito dos bons conteúdos?É difícil para o leigo entender quem está falando a verdade, de ciência, e quem está falando mentiras, de picaretagem. Ficou muito difícil, porque aqueles que falam dessa última forma, geralmente têm uma conversa muito bonita, inebriante, traz conceitos que parecem verdadeiros. Eles falam com a propriedade que não tem, mas também com o treinamento de quem está falando para as massas. Mas eu costumo dizer, procure o RQE – Registro de Qualificação de Especialista no portal do Conselho Federal de Medicina. A pessoa coloca o CRM, nome do médico e o local onde ele atende e verá se ele é realmente especialista e se uma determinada especialidade existe. As pessoas podem procurar o currículo lattes no CNPQ.Qual a opinião do senhor sobre a prova obrigatória para estudantes de medicina no final do curso?Eu sempre fui contra a prova do médico nos moldes da OAB, porque eu acho que não é uma prova que define a qualidade e a capacidade da pessoa e sempre penso que tem indivíduos que podem não ter tido a oportunidade de estudar numa boa escola, mas que podem ser resgatados. Por outro lado, a situação é tão vexatória, tão crítica e a inércia dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo é doentia. O indivíduo está graduado, mas não está formado nem moralmente nem tecnicamente para ser um profissional de saúde. Então, nesse momento eu defendo, porque eu acho que vai ser uma forma de denúncia, as pessoas vão perceber que indivíduos oriundos de determinadas escolas médicas não vão ter a chance de aprovação, porque passaram seis anos pagando muito caro em cursos que despejam na sociedade médicos sem condição de atuar. O que lamento muito porque, o mercado se regula nos grandes hospitais acessados pelas pessoas com maior poder aquisitivo. Mas a população geral, os usuários do SUS, ficam vulneráveis e não têm o direito de saber qual é a qualidade do médico que cuida da sua vida.O que o senhor pensa sobre o assunto o aumento de vagas e a expansão dos cursos de medicina?O que está acontecendo no Brasil é um descalabro, típico de um país que não tem seriedade. Não é possível a proliferação de tantas escolas médicas, simplesmente porque o país não se preparou para expandi-las. O professor precisa ser formado para ter técnicas pedagógicas de ensino médico, para ter ética e ensinar ética, ser um tutor, um paradigma. Ora, nenhum país do mundo teria condições de formar tantos professores num curto período de tempo. Então, quem está indo ensinar não tem formação de professor. Não sabemos nem quem é, qual é a qualificação. Também não há campos de prática para todo mundo. Medicina é um curso prático, tutorial, se não tiver bons campos de prática não funciona. A gente vê três, quatro faculdades jogando os alunos no serviço de saúde, no serviço público geralmente, sem nenhuma orientação.O senhor tem feito críticas à desumanização durante as consultas médicas.Tenho muitas críticas à medicina desumanizada, que não escuta, não toca, não examina o paciente, que pede muitos exames descontextualizados. É uma medicina cara, pouco resolutiva, fria, que adoece e não cuida de seres humanos. Há o médico que tem boa formação moral, mas tem má formação técnica e acaba solicitando muitos exames, porque ele não sabe examinar o paciente, não sabe fazer o eixo do raciocínio clínico, contextualizar os exames complementares, a história clínica, o exame físico do paciente. Isso retarda diagnósticos, encarece o sistema. E há o indivíduo que tem má formação técnica e moral, geralmente são esses que aparecem nas redes sociais com teorias anti-ciência para vender suplementos, hormônios, tratamentos, soros e outras coisas. Esses ferem de morte a ética médica e eu acho que são pessoas irrecuperáveis do ponto de vista da atuação na medicina. A má formação gera essas duas situações que estão se tornando majoritárias no país.O senhor atua na medicina pública e privada. Como lida com as diferenças entre os dois sistemas?O nosso sistema de saúde é único. Engloba o público e o privado. Embora ainda esteja em formação, o SUS é o maior programa de reparação e justiça social que este país já conheceu. Eu fui estudante e médico residente quando não havia o SUS. O seu programa de vacinação controlou ou extinguiu várias doenças infecciosas, deu acesso ao programa de saúde da família, ofereceu assistência farmacêutica de alto e baixo custo e possibilitou a todo brasileiro fazer transplantes. Ainda assim, temos muito a realizar, há lacunas e imperfeições. Militar na saúde privada não é um paradoxo com o SUS. Eu só trabalho no HUPES/UFBA e no hospital Aliança. No Hupes posso atender, assistir pacientes do SUS e ensinar a estudantes e jovens médicos para que tenham ética e sejam inconformados na busca de melhorias na saúde e humanismo na medicina. No hospital Aliança, com o seu conceito humanístico e de qualidade assistencial, me inspiro ao longo de 35 anos de atividades assistenciais e de gestão.
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