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A ascensão das religiões neopentecostais é um obstáculo na prevenção da violência contra a mulher?Sim. Recentemente, eu orientei uma aluna autora de uma dissertação de mestrado sobre mulheres em igrejas pentecostais. Nas entrevistas, elas contaram sobre o sofrimento delas, muitas com um grau de dor muito grande e com a autoestima completamente dilacerada por causa das violências que sofriam dentro de casa. No geral, essas mulheres recorrem à pessoa de referência de suas igrejas e têm como resposta algum conselho de que devem ter paciência e que precisam orar mais. São situações onde essas mulheres devem aceitar e se sacrificar por causa de suas religiões. Claro que essa não é uma regra. Algum pastor ou pastora pode dar apoio para que aquela mulher saia de casa, encontre uma atividade remunerada e possa sobreviver, mas, na maior parte dos casos, a Igreja prega que é preciso pedir a Deus porque ele vai prover. Então, muitas vezes, chega-se a um caso de violência letal, inclusive, com pessoas do próprio seio da igreja.O feminicídio costuma ser o estágio mais extremo de uma escalada de violências. Em sua avaliação, o que ainda falta nas políticas de prevenção para que as mulheres sejam protegidas antes que o pior aconteça?Falar sobre esse assunto incansavelmente. Assim, meninas mais jovens podem aprender que ações abusivas não devem ser naturalizadas e os meninos podem construir suas masculinidades de forma mais saudável. É preciso discutir essas questões para que as pessoas entendam que a violência não deve ser uma forma de se relacionar com ninguém. Outro ponto importante é a criação e o funcionamento dos serviços de proteção. Por exemplo, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), são centros de referência voltados para atender essas mulheres. No entanto, elas ainda funcionam de forma bastante precária por causa da falta de investimento. É muito importante que nossos governantes tenham mais vontade política. Até porque em capitais, como Salvador, temos uma série de serviços que podem contribuir para que existam índices menos alarmantes, mas, em cidades pequenas do interior, onde sequer temos um centro de referência especializado, a situação é pior. Se nesses lugares temos uma única delegacia, vamos capacitar os funcionários de atendimento para que eles tenham ideia do que consistem, de onde surgem e por que surgem os homicídios de mulheres. A ideia que ainda se tem é a de que a mulher provocou o parceiro para que ele cometesse aquela violência.Vivemos um momento em que as redes sociais influenciam profundamente as relações pessoais. A senhora vê essas plataformas como aliadas ou ameaças no combate ao machismo e à violência de gênero?As redes sociais alimentam a misoginia e estimulam a violência e a ideia de masculinidade agressiva. Uma coisa que é importante, além de pensar na legislação, é que escolas e famílias estejam em vigilância. Temos assistido meninas sendo submetidas a desafios nas redes sociais para serem aceitas em grupos, aos moldes do que antes eram os trotes de faculdade. Vivemos numa sociedade violenta, e essa violência não pode deixar de ser discutida. Um obstáculo enorme que enfrentamos para o avanço dessas discussões é que a sociedade ainda naturaliza as relações assimétricas entre homens e mulheres. Há uma lógica patriarcal em que a mulher está em posição de inferioridade e de submissão. É preciso desmistificar e mostrar que isso é uma construção. Essa atitude deve ser tomada desde cedo para que as meninas não cresçam reproduzindo o que elas assistem nas novelas ou ouvem nas músicas. O nosso país está em uma das primeiras colocações no ranking de feminicídios no mundo e isso é inadmissível. A América Latina e o Brasil, particularmente, tem o machismo na base da formação social e claro que isso alimenta a violência. Mas, é preciso que a gente passe a discutir essas questões nos mais diferentes espaços como comunidades, escolas, para que a gente capacite profissionais que trabalham no serviço de atendimento.Esses profissionais não são capacitados?Não! E é assustadora essa lógica da não capacitação. Os profissionais não discutem violência em seus processos de formação. A gente vê que essa discussão de gênero, raça, sexualidades e seus entrelaçamentos, assim como a violência, ainda não é foco no processo formativo das equipes que trabalham nesses serviços. Sejam advogados, assistentes sociais, psicólogos, médicos… Nós não somos treinados para conhecer a violência, então, quando surge alguém que já sofreu agressão, a tendência é minimizar a situação.