Ameaça silenciosa: avanço do mar coloca em risco aves migratórias na Amazônia


Estudo mostra que aumento do nível do mar está transformando bancos de maré no litoral do Amapá e impactando diretamente a alimentação de várias espécies. Maçarico-rasteirinho (Calidris pusilla) é considerado Em Perigo (EN) pelo ICMBio
Álvaro Alemany / iNaturalist
Um fenômeno silencioso está modificando profundamente os ecossistemas costeiros do norte do Brasil: o avanço do nível do mar.
Um estudo publicado na revista Environmental Research Letters revelou que a transgressão marinha – quando o mar avança sobre áreas de terra firme – está criando novos bancos de maré na costa do Amapá, mas esses ambientes não são adequados para espécies migratórias que dependem dessas zonas para se alimentar.
A pesquisa avaliou cerca de 630 km de litoral amazônico e descobriu que as aves migratórias, como o maçarico-rasteirinho (Calidris pusilla), evitam essas novas áreas, onde há escassez de invertebrados, sua principal fonte de alimento. As densidades de aves nos bancos de maré recém-formados são quase 10 vezes menores do que nas áreas tradicionais, mais antigas.
“O aumento do nível do mar é um fenômeno diretamente relacionado ao aquecimento global e já estamos observando mudanças rápidas em áreas costeiras. Várias tentativas de mitigar diretamente esses impactos no Brasil tem perfil reacionário, insuficiente, funcionalmente temporário e, em sua maior parte, voltado à proteção de investimentos imobiliários e interesses turísticos, às vezes em detrimento de outros locais”, explica Jason Mobley, gerente do Programa Aves Migratórias da Aquasis, ONG envolvida na pesquisa.
Impactos em cadeia
Segundo o artigo, mais da metade das espécies de aves limícolas migratórias no mundo está em declínio. Essas aves dependem de áreas estratégicas ao longo da rota entre o Ártico e a América do Sul para descansar e se alimentar. Com a perda desses pontos de apoio, todo o ciclo migratório é comprometido.
Esses habitats, geralmente abrigam áreas ricas em invertebrados marinhos, funcionam como locais de descanso e reabastecimento energético, essenciais para sustentar as adaptações fisiológicas exigidas pelas viagens de milhares de quilômetros que estas aves realizam todos os anos.
Além do maçarico-rasteirinho, outras espécies ameaçadas também estão sendo impactadas, como o maçarico-de-bico-torto (Numenius hudsonicus), considerado Vulnerável (VU) na Lista Brasileira de Espécies Ameaçadas de Extinção, feita pelo ICMBio.
Maçarico-de-bico-torto (Numenius hudsonicus) também enfrenta desafios decorrentes do avanço do mar na costa
Alejandra / iNaturalist
“Esses efeitos podem comprometer não apenas o ciclo biológico das aves, mas também as cadeias ecológicas desde o Ártico ao sul da América do Sul, incluindo a reprodução e a manutenção das populações ao longo do tempo”, alerta José Onofre Monteiro, coordenador de monitoramento do Programa Aves Migratórias.
Embora o avanço do mar possa manter a extensão dos bancos de maré por meio da migração da linha costeira para o interior do continente, a pesquisa mostrou que isso não garante a qualidade do habitat. Os novos bancos têm sedimentos mais compactados, o que dificulta a presença de invertebrados marinhos que servem de alimento para as aves.
O estudo foi o primeiro a combinar levantamentos aéreos de aves, imagens de satélite e amostragens de sedimentos e fezes para entender a relação entre disponibilidade de alimento e uso do habitat pelas aves.
Litoral amazônico concentra bandos de aves limícolas que incluem diferentes espécies
naturaj / iNaturalist
É possível reverter?
Segundo os pesquisadores, mitigar esse impacto exige mais do que ações pontuais. É necessário enfrentar o problema na raiz: reduzir as emissões de gases do efeito estufa e aumentar o uso de fontes alternativas de energia, de forma planejada para evitar impactos negativos ao meio ambiente.
A pesquisa alerta que, mesmo em regiões remotas e preservadas, como a costa amazônica, os efeitos das mudanças climáticas já são reais e profundos. A conservação das aves migratórias exige atenção global e começa com o cuidado local.
“Nossa meta para realmente mitigar os impactos sobre as aves migratórias devido às mudanças climáticas deve ser através da diminuição do consumo de combustíveis fósseis, incentivo à transição para energia renovável socialmente justa e ecologicamente equilibrada”, finaliza Mobley.
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