Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta emagrecedora Mounjaro em dose fracionada e até com delivery


g1 encontrou o medicamento sendo oferecido em dois estabelecimentos, um do Maranhão e outro do Piauí. Ambos fracionam a dose, o que é proibido. Anvisa afirma que venda só pode ser feita por farmácias. Fabricante alerta para riscos ‘potencialmente fatais’. Ozempic de rico: clínicas de estética oferecem dose de Mounjaro e entrega delivery
O medicamento Mounjaro só estará disponível nas farmácias do Brasil a partir da segunda quinzena de maio, mas algumas clínicas de estética já lucram com a comercialização irregular da chamada caneta emagrecedora.
O g1 encontrou o remédio sendo vendido por dose fracionada, sem receita médica, em dois estabelecimentos, um no Maranhão e outro no Piauí. As clínicas anunciam o produto nas redes sociais ou pelo WhatsApp.
Tem uma sugestão de reportagem? Escreva para o g1
Elas ainda oferecem “bioimpedância grátis” e “consulta”, não com um médico, mas com a proprietária do estabelecimento, em Teresina, ou com uma biomédica, em São Luís, onde é feita também entrega delivery.
De acordo as regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), há um combo de irregularidades:
apenas farmácias e drogarias podem vender o medicamento;
o Mounjaro não pode ser vendido por dose, porque a embalagem registrada na Anvisa não é fracionável;
o medicamento só pode ser vendido com receita e apenas médicos podem prescrever.
Procurada, a dona da clínica de Teresina alegou que tem equipe multidisciplinar. A clínica de São Luís não respondeu.
Fabricante denuncia venda ilegal
Segundo uma carta aberta divulgada pela farmacêutica norte-americana Eli Lilly, fabricante do Mounjaro, nenhum estabelecimento está vendendo o remédio legalmente no Brasil, porque ele ainda não foi disponibilizado para o mercado brasileiro.
“Esses produtos podem ser falsos ou estão sendo ‘revendidos’ por indivíduos que os obtiveram por outros meios”, diz o comunicado.
Em resposta ao g1, a empresa disse que versões falsificadas ou manipuladas representam “riscos de segurança potencialmente fatais aos pacientes”.
Autorizado pela Anvisa em 2023 para tratamento do diabetes tipo 2, o Mounjaro é produzido a partir do ingrediente ativo tirzepatida. Ele ficou conhecido como “Ozempic de rico”, por ser mais caro e prometer mais resultados e menos efeitos colaterais do que o concorrente.
A fabricante do medicamento ainda aguarda a liberação de uso do remédio para emagrecimento no Brasil, mas médicos já podem prescrevê-lo com este fim, se avaliarem que os benefícios do tratamento superam os riscos.
‘Fiz primeiro em mim para depois vender’
Legalmente, apenas pessoas físicas podem adquirir o Mounjaro por meio de importação ou comprando diretamente nos países onde o produto já é vendido, apresentando uma receita médica.
No caso das clínicas encontradas pelo g1, em Teresina (PI), e em São Luís (MA), a reportagem confirmou que o medicamento era vendido sem qualquer prescrição. Na primeira clínica, o g1 viu a caneta de Mounjaro. Na outra, recebeu uma foto por WhatsApp. Os números de lote foram enviados à fabricante, que não confirmou se o medicamento é original.
No início de março, a clínica de Teresina anunciou a oferta da caneta, dizendo que clientes poderiam agendar uma consulta para garantir uma dose de Mounjaro.
Procurada, a clínica disse que “desenvolveu um método próprio de emagrecimento patenteado denominado Peso Certo” e que o método é feito por uma equipe multidisciplinar “com acompanhamento médico, nutricional, fisioterapeuta, psicólogo e nutricionista”.
Clínica de Teresina vende dose de Mounjaro sem prescrição médica
Reprodução/Arte g1
A informação é diferente da que foi repassada por Whatsapp pela atendente da clínica. Sem saber que falava com uma jornalista, ao ser questionada se era agendada consulta com médico, a funcionária disse que a dona da clínica, que é nutricionista, faz o acompanhamento e a bioimpedância — avaliação física feita por um aparelho que estima a composição corporal, como o percentual de massa magra, gordura e água.
A clínica justificou que as conversas referiam-se ao “convite para uma consulta e a propaganda da tirzepatida, caso tenha indicação médica do Mounjaro, quando estiver disponível para liberação pelos órgãos de controle”. Mas o anúncio da clínica fala em “estoque limitado”.
Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro
Divulgação
O g1 não encontrou nenhum médico na clínica quando esteve lá. Sem saber que falava com uma repórter, a proprietária, Lanna Coelho, também não citou equipe multidisciplinar. Seu conhecimento sobre como funciona o Mounjaro foi adquirido por experiência própria.
“Eu perdi 21kg. Fiz primeiro em mim para depois vender. Eu precisava saber o que meu cliente sentia, quais eram os efeitos colaterais. Só comecei a trabalhar com o Mounjaro depois que emagreci”, contou Lanna.
Ela ainda explicou como funciona o tratamento. “O protocolo é de um mês. Eu fecho, geralmente, com tudo: a suplementação [de vitaminas e minerais] e as quatro aplicações”, disse.
Para quem quer perder pouco peso, ela orienta outro protocolo: tomar duas doses e depois fazer aplicação de enzimas na gordura localizada que restar.
Segundo a médica Simone Van de Sande Lee, diretora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, esses protocolos não são indicados.
“Não é um produto de uso recreativo para quem quer perder alguns quilos. A titulação de dose deve ser feita conforme prescrição médica, com aumento gradual da dose de acordo com a bula ou mais lentamente, de forma individualizada, dependendo da tolerância do paciente”, explicou a endocrinologista.
‘Enviamos a dose na seringa’
Na clínica de São Luís, a entrega do Mounjaro é delivery. Por WhatsApp, sem saber que falava com uma jornalista, a atendente explicou que o medicamento é extraído da embalagem original com uma seringa, e entregue em um isopor com gelo.
Clínica em São Luís faz entrega delivery da dose de Mounjaro.
Reprodução/Arte g1
Segundo a endocrinologista Sande Lee, isso traz riscos de eventos adversos imprevisíveis. “Não há qualquer garantia de que o produto é original. Além disso, há risco de contaminação, pelo possível manuseio inadequado”.
O g1 foi até a clínica, mas a funcionária não mostrou o produto, alegando que ele estava em local refrigerado. Posteriormente, atendendo a um pedido pelo WhatsApp, ela enviou uma foto da caneta de 15 mg.
Procurada, a clínica não respondeu aos questionamentos.
Clínica de estética de São Luís mostra canetas emagrecedoras à venda
Divulgação
Medicamento entra ilegalmente no Brasil
De acordo com fabricante do Mounjaro, a empresa é a única fornecedora legal da tirzepatida e “não a fornece para farmácias de manipulação, spas médicos, centros de bem-estar, varejistas on-line ou outros fabricantes”.
Dados de apreensões do Mounjaro nos aeroportos brasileiros mostram que o produto tem sido mais contrabandeado em 2025.
Segundo a Receita Federal, o valor das canetas apreendidas apenas no primeiro trimestre – R$ 1,2 milhão – já é 74% maior do que em todo o ano de 2024. Já a Polícia Federal apreendeu cerca de 1.313 unidades nos últimos 12 meses, sendo 1.079 apenas em 2025.
Apreensões de Mounjaro feitas pela Receita Federal em 2024 e em 2025
Arte g1
A Anvisa determinou que a partir de julho, quando o Mounjaro já estará nas farmácias, a receita desta e de outras marcas de canetas emagrecedoras terá que ficar retida.
A medida foi tomada após relatos de eventos adversos relacionados ao uso desses medicamentos para fins de emagrecimento. Até 19 de março de 2025, a Anvisa recebeu 51 notificações referentes apenas à tirzepatida.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.